Opinião

A verdade única da transposição

Washington Novaes
Os recentes despautérios do presidente da República, em sua viagem às obras de transposição de águas do Rio São Francisco - atirando ao fogo dos infernos, de cambulhada, o Judiciário, o Tribunal de Contas da União (TCU), o Ministério Público, organizações sociais, científicas e religiosas, até bispos -, levam a temer que tanta pretensão à verdade única e incontestável possa conduzir a conflitos institucionais muito graves. Ou ao ridículo, já configurado em charge do cartunista Jorge Braga, do jornal O Popular (25/8) de Goiânia, que retratou o chefe da Nação ouvindo o preço de Judas por seu apoio: "Trinta dinheiros do mensalão."


A repercussão das falas presidenciais, entretanto, parece haver deixado em segundo plano a questão específica do projeto de transposição, já executado em cerca de 15%, apesar dos argumentos alinhavados há mais de dez anos por muitos especialistas, que apontaram alternativas mais adequadas para os problemas que a transposição supostamente resolveria - argumentos desqualificados pelo presidente e por alguns de seus ministros e ex-ministros como fruto de "má-fé", "ignorância", "irresponsabilidade" e por aí afora. Ao longo dos 12 anos em que ocupa este espaço, e mais alguns antes, o autor destas linhas apontou - sem resposta - muitas dessas questões, desde que projeto semelhante, do ex-ministro Aluizio Alves, no início da década de 1990, foi inviabilizado por um parecer do TCU.

Ainda assim, voltou à cena logo no primeiro ano do atual governo. Especialistas do porte dos professores Aldo Rebouças, Aziz Ab"Saber, João Suassuna, João Abner e muitos outros mostraram que se tratava de um mau caminho, já que o problema de água nas regiões a serem beneficiadas não era de escassez, e sim de má gestão - pois existem ali, em 70 mil açudes, nada menos que 37 bilhões de metros cúbicos (m3) de água (sem redes que os distribuam), quando a transposição levará 2,1 bilhões de m3, mas também sem redes de distribuição para as áreas isoladas, mais carentes. Nada menos que 70% da água se destinará a projetos de irrigação e 26% ao abastecimento de cidades. Além do mais, a disponibilidade de água no Nordeste setentrional é de 220 m3 por segundo, para um consumo humano e industrial de 22 m3/segundo; e será de 131 m3/segundo o consumo na irrigação previsto no projeto (226 mil hectares). Não bastasse, o Comitê de Gestão da Bacia do São Francisco - que conhece de perto a área -, por 44 votos a 2, condenou o projeto, que considerou "centrado em grandes obras, desconectadas de uma visão mais ampla e adequada do semiárido" e que se destinariam a beneficiar essencialmente grandes projetos de exportação de grãos e frutas.

Tem mais. Embora o projeto ainda tivesse de ser aprovado pelo Ibama, a então ministra do Meio Ambiente, em pronunciamento público, deu-lhe o seu aval. E o Ibama, ao examinar o estudo de impacto ambiental, observou que os açudes para os quais a água transposta seria encaminhada perdiam, por evaporação, em média 75% do que acumulavam; nos solos que seriam beneficiados com irrigação, 20% tinham "limitação para usos agrícolas"; somados os "solos litólicos, notadamente impróprios para esse uso", chegava-se a mais de 50%; e "62% precisam de controle, por causa da forte tendência à erosão"; sem falar que o desmatamento no Cerrado já comprometia o fluxo dos rios formadores do São Francisco. Ainda assim, o Ibama concedeu licença prévia, condicionada ao cumprimento de 31 exigências (que até hoje não se sabe se foram cumpridas).
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