Lembranças
O "negão" da Becker
Sidney Borges
O canal National Geographic está apresentando um documentário em série sobre a Segunda Guerra Mundial. Ontem foi ao ar o capítulo de número 2. Para quem se interessar, o próximo irá na quarta-feira, às 21h00. Na noite de ontem foi mostrada a invasão da França com o título "Blitzkrieg". Quer dizer "guerra relâmpago" e faz alusão à técnica usada pelos nazistas, que combinava velocidade nos deslocamentos de blindados com o uso dos bombardeiros de mergulho "Stuka".
Era algo novo em termos de guerra, no conflito anterior a cavalaria ainda usava cavalos e os aviões não tinham poder de fogo para causar danos consideráveis. Embora os franceses tivessem tanques superiores aos panzer alemães, os ataques aéreos fizeram a diferença. As tropas aliadas compostas por soldados franceses, belgas e ingleses só tiveram um caminho. Recuar. Em pouco tempo estavam encurraladas em Dunkerque, tendo uma única chance de fuga. Pelo mar. Nem todos conseguiram, muitos morreram ou foram aprisionados.
Dentre as tropas capturadas havia negros dos exercitos coloniais franceses que foram filmados pelos cinegrafistas que acompanhavam as tropas de Hitler e mostrados aos alemães como símbolo de degradação dos aliados. Enquanto olhavam assustados para as câmeras, soldados nazistas riam deles, parecendo se divertir. Poucos escaparam, a maioria foi fuzilada.
Os rapazes alemães da cena, quase meninos, tinham pouco mais de 20 anos, acreditavam pertencer a uma raça superior. Negros, judeus, que eles erroneamente classificavam como raça, ciganos e eslavos eram considerados seres inferiores e não mereciam ser tratados como humanos.
O tempo é senhor da razão. Com o avanço da ciência é de conhecimento universal não haver diferenças entre os diversos tipos humanos e suas cores variadas, na verdade quase não há diferenças entre humanos e chimpanzés. Antes que isso fosse provado de forma irrefutável, 40 milhões morreram num conflito que envolveu o mundo e que tinha na teoria racial seu alicerce.
Para os mais atentos sempre foi notória a baboseira da superioridade.
A retirada de Dunkerque aconteceu em 1940. Em 1985, 45 anos depois, tive a oportunidade de participar do campeonato mundial de vôo-a-vela, em Rieti, na Itália. Não como piloto, viajei como jornalista, tendo aproveitado para dar um giro pela Bota. Campeonatos de planadores não entusiasmam o público, o esporte nunca será popular, quase não há o que ver.
Os planadores decolam e quanto todos estão no ar é dado o sinal da largada. Os percursos na Itália eram longos, as provas cobriam entre 300 e 500 quilômetros. Só depois de 5 ou 6 horas é que há alguma emoção. Na chegada.
No entanto, se não há emoção para a platéia, sobra adrenalina para quem voa. Desde a década de 1920 o vôo-a-vela é muito difundido na Alemanha onde há milhares de praticantes, apesar das restrições decorrentes do espaço aéreo reduzido.
Em 1985 meu sonho era ter um rádio Becker, alemão, o melhor que havia. No aeródromo de Rieti, antiga base aérea, os fabricantes de equipamentos montaram suas barracas. Era possivel comprar paraquedas, instrumentos de vôo, carretas de reboque, planadores, roupas, souvenirs dos países participantes. Uma feira colorida e concorrida, ótimo lugar para ver novidades e comer cachorro quente alemão.
No segundo dia de competição visitei o stand da Becker. Os preços eram salgados, o rádio que eu queria custava mais de 1000 dólares. Convém lembrar que em 1985 era possivel dormir bem, com café da manhã, por 20 dólares. Em quase toda a Europa, na Alemanha e na Inglaterra era um pouco mais caro, talvez 25 ou 30 dólares. Mesmo assim 1000 dólares era uma fortuna para quem vivia de salário e pretendia esticar a viagem.
Enquanto eu observava catálogos, sem entender patavina, apenas vendo figuras, começou uma discussão ríspida entre um jovem da equipe alemã e o gerente do stand. A coisa engrossou mesmo, pouco faltou para que saissem no tapa. Ainda bem que não aconteceu, o gerente era um cidadão de origem africana do porte do Mike Tyson, com bíceps escapando das mangas da camiseta.
O jovem, magro como um graveto, alto e louro afastou-se agastado. A mim pareceu que blasfemava, uma frase em alemão provocou gargalhadas gerais e tive certeza que não era boa coisa. Claro que provocou gargalhadas apenas em quem entendia alemão, não é o meu caso, mal falo português, mas ao meu lado um colega de vôos de Bauru entendeu e traduziu.
- O que ele disse, perguntei?
- Que o avô dele, que foi coronel da SS era menos chato e menos alemão do que esse negão presunçoso.
- Por que ele disse isso? Você sabe?
- O rádio de um dos planadores alemães está com problema. Coisa simples. O rapaz queria trocar a peça defeituosa. Pegaria a de um dos rádios em exposição, a equipe se responsabiliziraria e ao final do campeonato compraria o rádio. Não teve jeito o gerente não cedeu a peça e nem cogitou de vender o rádio. É contra o regulamento, disse,
Pois é, regulamento é coisa série para um alemão. Ainda que tenha a pele da cor da asa da graúna.
A partir daí o stand da Becker virou motivo de brincadeira. O "Negão da Becker", como ficou conhecido o rigoroso gerente acabou promovido ao alemão mais alemão de Rieti.
Ontem, ao ver as cenas da guerra esse capítulo loginquo da minha quase longínqua existência me veio à cabeça. Fiquei imaginando que o avô do gerente poderia perfeitamente ser um dos soldados negros capturados em 1940. Racismo é sinônimo de ignorância. Coisa do passado que ainda persiste em cabeças que vivem no passado.
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Sidney Borges
O canal National Geographic está apresentando um documentário em série sobre a Segunda Guerra Mundial. Ontem foi ao ar o capítulo de número 2. Para quem se interessar, o próximo irá na quarta-feira, às 21h00. Na noite de ontem foi mostrada a invasão da França com o título "Blitzkrieg". Quer dizer "guerra relâmpago" e faz alusão à técnica usada pelos nazistas, que combinava velocidade nos deslocamentos de blindados com o uso dos bombardeiros de mergulho "Stuka".
Era algo novo em termos de guerra, no conflito anterior a cavalaria ainda usava cavalos e os aviões não tinham poder de fogo para causar danos consideráveis. Embora os franceses tivessem tanques superiores aos panzer alemães, os ataques aéreos fizeram a diferença. As tropas aliadas compostas por soldados franceses, belgas e ingleses só tiveram um caminho. Recuar. Em pouco tempo estavam encurraladas em Dunkerque, tendo uma única chance de fuga. Pelo mar. Nem todos conseguiram, muitos morreram ou foram aprisionados.
Dentre as tropas capturadas havia negros dos exercitos coloniais franceses que foram filmados pelos cinegrafistas que acompanhavam as tropas de Hitler e mostrados aos alemães como símbolo de degradação dos aliados. Enquanto olhavam assustados para as câmeras, soldados nazistas riam deles, parecendo se divertir. Poucos escaparam, a maioria foi fuzilada.
Os rapazes alemães da cena, quase meninos, tinham pouco mais de 20 anos, acreditavam pertencer a uma raça superior. Negros, judeus, que eles erroneamente classificavam como raça, ciganos e eslavos eram considerados seres inferiores e não mereciam ser tratados como humanos.
O tempo é senhor da razão. Com o avanço da ciência é de conhecimento universal não haver diferenças entre os diversos tipos humanos e suas cores variadas, na verdade quase não há diferenças entre humanos e chimpanzés. Antes que isso fosse provado de forma irrefutável, 40 milhões morreram num conflito que envolveu o mundo e que tinha na teoria racial seu alicerce.
Para os mais atentos sempre foi notória a baboseira da superioridade.
A retirada de Dunkerque aconteceu em 1940. Em 1985, 45 anos depois, tive a oportunidade de participar do campeonato mundial de vôo-a-vela, em Rieti, na Itália. Não como piloto, viajei como jornalista, tendo aproveitado para dar um giro pela Bota. Campeonatos de planadores não entusiasmam o público, o esporte nunca será popular, quase não há o que ver.
Os planadores decolam e quanto todos estão no ar é dado o sinal da largada. Os percursos na Itália eram longos, as provas cobriam entre 300 e 500 quilômetros. Só depois de 5 ou 6 horas é que há alguma emoção. Na chegada.
No entanto, se não há emoção para a platéia, sobra adrenalina para quem voa. Desde a década de 1920 o vôo-a-vela é muito difundido na Alemanha onde há milhares de praticantes, apesar das restrições decorrentes do espaço aéreo reduzido.
Em 1985 meu sonho era ter um rádio Becker, alemão, o melhor que havia. No aeródromo de Rieti, antiga base aérea, os fabricantes de equipamentos montaram suas barracas. Era possivel comprar paraquedas, instrumentos de vôo, carretas de reboque, planadores, roupas, souvenirs dos países participantes. Uma feira colorida e concorrida, ótimo lugar para ver novidades e comer cachorro quente alemão.
No segundo dia de competição visitei o stand da Becker. Os preços eram salgados, o rádio que eu queria custava mais de 1000 dólares. Convém lembrar que em 1985 era possivel dormir bem, com café da manhã, por 20 dólares. Em quase toda a Europa, na Alemanha e na Inglaterra era um pouco mais caro, talvez 25 ou 30 dólares. Mesmo assim 1000 dólares era uma fortuna para quem vivia de salário e pretendia esticar a viagem.
Enquanto eu observava catálogos, sem entender patavina, apenas vendo figuras, começou uma discussão ríspida entre um jovem da equipe alemã e o gerente do stand. A coisa engrossou mesmo, pouco faltou para que saissem no tapa. Ainda bem que não aconteceu, o gerente era um cidadão de origem africana do porte do Mike Tyson, com bíceps escapando das mangas da camiseta.
O jovem, magro como um graveto, alto e louro afastou-se agastado. A mim pareceu que blasfemava, uma frase em alemão provocou gargalhadas gerais e tive certeza que não era boa coisa. Claro que provocou gargalhadas apenas em quem entendia alemão, não é o meu caso, mal falo português, mas ao meu lado um colega de vôos de Bauru entendeu e traduziu.
- O que ele disse, perguntei?
- Que o avô dele, que foi coronel da SS era menos chato e menos alemão do que esse negão presunçoso.
- Por que ele disse isso? Você sabe?
- O rádio de um dos planadores alemães está com problema. Coisa simples. O rapaz queria trocar a peça defeituosa. Pegaria a de um dos rádios em exposição, a equipe se responsabiliziraria e ao final do campeonato compraria o rádio. Não teve jeito o gerente não cedeu a peça e nem cogitou de vender o rádio. É contra o regulamento, disse,
Pois é, regulamento é coisa série para um alemão. Ainda que tenha a pele da cor da asa da graúna.
A partir daí o stand da Becker virou motivo de brincadeira. O "Negão da Becker", como ficou conhecido o rigoroso gerente acabou promovido ao alemão mais alemão de Rieti.
Ontem, ao ver as cenas da guerra esse capítulo loginquo da minha quase longínqua existência me veio à cabeça. Fiquei imaginando que o avô do gerente poderia perfeitamente ser um dos soldados negros capturados em 1940. Racismo é sinônimo de ignorância. Coisa do passado que ainda persiste em cabeças que vivem no passado.
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