Coluna do Mirisola

Um conto inédito do novo livro de Mirisola

Marcelo Mirisola*

A grande novidade da semana é que o Reinaldo Pornopopéia Moraes resolveu aceitar meu convite para fazer a orelha do Memórias da Sauna Finlandesa - um livro de contos que deve sair ainda este ano pela Editora 34. Então, aqui vai – em primeira mão - um aperitivo. O nome do conto é:

Spaghetti espiritual

Outro dia ela me disse:

"Você é uma pessoa muito difícil de gostar, mas eu gosto mesmo assim".

Agradeci o desprendimento e a generosidade, e respondi: "obrigado".

Ela foi em frente: "Você é uma peste, não me faz nada bem".

Tive de lembrá-la que, além de ser uma pessoa difícil de gostar, e de ser uma peste, eu também "transformava a vida dela num inferno".

Não satisfeita, soltou esta: "Não sei, não...fico pensando que se Deus nos colocou no mesmo caminho, foi por algum motivo, algo de muito sério deve existir, um karma, sei lá, uma sentença de outras vidas, tipo estava escrito nas estrelas..."

"Tava escrito nas estrelas?"

"Destino. Evolução. Novas chances, outras possibilidades... você sabe do que eu estou falando?"

"Claro que sei: Tetê Espíndola".

"O quê?"

Alguns dados. Ela tem 24 anos, e eu vou completar 42 em maio.

Aí eu disse: "Ou seria Amelinha? Sempre confundo essas duas, mas deixa pra lá. Elas não são do seu tempo".

"Saco, você sempre dá um jeito de escapar do assunto".

Não vou negar. Quando posso dou uma tergiversadinha. Mas é sempre por uma boa causa. Da última vez, foi em razão da nossa diferença de idade. Uma mulher de 24 anos é muito velha para um cara como eu, de 42, que forjou sua identidade viril e matadora assistindo a bangue-bangue pela televisão com o avô.

Ela prosseguiu: "Sabia que quando uma borboleta bate asas no hemisfério norte..."

Tive de interrompê-la: "Ah, não, essa história da borboleta, não!"

"Grosso".

"Pois é, querida. Acho que é Karma. K-a-r-m-a. Afinal, karma com k ou c? Nem sei como é que escreve essa bobagem, mas acho que só pode ser isso mesmo".

Em algum momento eu tinha de concordar. Aliás, aprendi esse truque - dissimular diante de um risco iminente, e controlar a respiração - com Giuliano Gemma (meu mestre de Yôga), em "O Dólar Furado", direção de Giorgio Ferroni, 1965. Clássico do Western-Spaghetti.

"Evoluímos" - ela disse: - "Você falando em Karma... quem diria, hein?"

"Evoluímos tanto que daqui a pouco vou começar a fumar maconha com seus amigos. Você me ajudaria a escolher uma bata na feirinha da Benedito Calixto? Podíamos comprar incensos fedorentos e velas coloridas, celebraríamos os gnomos e os seres elementais, que tal?"

"Não tem jeito, com você não tem diálogo..."

Em seguida - evidentemente - ela ia reproduzir o lugar-comum fatal: "com você só tem monólogo".

Antes que ela cometesse essa atrocidade, ou talvez voltasse à historinha da borboleta que bate asas no hemisfério norte, resolvi dar mais uma chance. Eu gostava daquela garota. Lembrei que, vezenquando, apesar dos esoterismos franqueados e gnomos afins, e sobretudo apesar do meu ceticismo, ela ia rezar pelo nosso love na Igreja do Calvário.

Uma curiosidade: essa Igreja paira geograficamente sobre a feirinha desencanada da Pça. Benedito Calixto. Sei lá, me senti um canalha por causa disso. Um vira-latas que merecia os aforismos de Cioran. Ela consumia os gnomos da Benedito Calixto, e eu não passava sem Cioran. O filósofo romeno era minha Seicho-no-Ie. Então considerei as rabanadas que ela havia me trazido naquele Natal, e os peitões dela (servidos à la carte sempre que eu pedia).

A gente se gostava, e não fazia nenhum sentido brigar por conta de pequenos "desacertos espirituais", digamos assim.

Era minha vez: "Frequento um terreiro de macumba".

"Não dá! Desisto. Não seja leviano,por favor. Você frequenta o quê?"

"Um terreiro lá no Jabaquara. Sou filho de Ogum".

"Você é filho de Ogum??? O cético dos céticos. O niilista debochado, VOCÊ?! ... frequenta um terreiro e é filho..."

"Vamos por partes. Antes de qualquer coisa, sou filho da dona Marietta. Mas também sou filho de São Jorge, Ogum. Fui coroado numa cerimônia belíssima. Um ritual despojado, e ao mesmo tempo grandioso. O tête-à-tête com o sobrenatural que o Candomblé oferece é algo incomparável".

"Tá falando sério?"

"Vou lhe dizer uma coisa. Se existe uma dimensão tátil para o termo "sobrenatural", isso só é possível (ou tem cabimento...) no Candomblé”.

“E?...”

“Os Orixás são interesseiros e vaidosos, e pedem a contrapartida imediata. O treco é palpável. A meu ver, se os Orixás pedirem dinheiro, melhor ainda: isso aproxima mais do comezinho, do humano torpe, trivial e irrelevante. Cria empatia e identidade. Você confia em algo que não seja espelho?"

"Aonde você quer chegar?"

"Imagem e semelhança são uma questão de exercício, sabia?" - falei isso para Ela não lembrar que confiava em sua psicanalista, a Maria Rita. De qualquer forma, o efeito da frase foi bom. Então continuei:

"Atravessar a rua Teodoro Sampaio pode ser um milagre tão espetacular quanto andar sobre as águas do Mar da Galiléia. Ter fé é a mesma coisa que olhar no espelho. Desde que você - evidentemente - tenha estilo. Enxerga-se o que o desejo permitir, seja para o bem ou para o mal. Nesse sentido, de todas as religiões,o Candomblé é a mais geométrica que conheci".

"Geométrica? Do que você está falando?"

"Sim. Geométrica, proporcional. As coisas acontecem de acordo com o tamanho, a ambição correspondente. Foi assim que confraternizei com Exu, ele parecia o Capeta, mas era apenas um mensageiro; encaminhou minhas demandas para Ogum, meu protetor. Fiz uma macumba legal. Usamos inhame, feijão-de-corda, tomei um banho de descarrego e, se bem me lembro, tinha melaço e perfume na jogada. Você adoraria estar lá".

Ela bambeou um pouco, quase caiu da cadeira em que se empoleirava (tinha mania de ficar de cócoras sobre cadeiras giratórias) e, antes de retrucar qualquer coisa, acrescentei:

"Todavia não recomendo "Jubiabá", do Jorge Amado. O livro é mal escrito e às vezes pueril. Não entendo: por que um intelectual do porte de Camus teria se aproximado de um simplório do feitio de Amado? Com exceção do Quincas Berro D’água, só tem uma explicação...”

“É mesmo?!”

“Feitiçaria”.

"Não precisa falar mais nada. Acredito. Se é assim, eu acredito. Você me convenceu".

"Sabia que eu rezo o Pai Nosso toda santa manhã?"

"Reza?"

"Sou o maior carola, minha princesa" (ela adorava ser chamada de "princesa") - "Outro dia, Pai Eduardo, o sacerdote que incorpora os Orixás, jogou búzios, e falou sobre nosso caso".

Ela estava estupefata. Ofegava, suava frio... parecia que ouvia minhas palavras de outro lugar, confesso que estranhei sua ausência. Aos poucos, entretanto, retomou o fôlego, e voltou a ser o que sempre foi, e disse: "Então a gente tem um caminho a percorrer, você não pode negar, se estamos juntos é porque Deus quis assim, vai negar agora?"

"Não vou negar nem assinar embaixo. Só sei de uma coisa. Se Ele quis assim, conforme você disse, e se Ele é parceiro da Amelinha, a única conclusão sensata..."

"Conclusão sensata? Quer me deixar louca?"

"Se ele fez isso, olha, lamento dizer, mas Ele é mais xarope do que você e a Amelinha juntas. Pensando bem, Ele é mais canastrão do que o Cid Moreira, Ele é um especial eterno de final de ano do Roberto Carlos, Cazzo! Se Deus "quis assim", ele é muito brega, e se ele é parceiro da Amelinha, bem, então ... meu Deus! Deus é o Belchior! Caralho! Se é assim, eu acredito Nele! Vou embora. Tchau".

************

Mesmo porque não adiantaria nada eu me arrepender de ter terminado com ela - como eu me arrependi logo em seguida, e irreparavelmente. Deixei Simone sozinha no ponto de táxi.

Ela não derramaria uma lágrima na minha frente. Não ia me dar essa colher de chá: havia aprendido a ser "durona". Eu que a ensinei. Ao contrário de mim, que me despedi apressadamente, e virei à direita: na direção de quem dobra a Martins Fontes, e não sabe se vai alcançar a boate Kilt sem antes chorar um balde de lágrimas sertanejas em vão. Em outras palavras: eu havia me transformado numa piada ambulante, e ainda tinha que atravessar a rua.

Pensei: "Do outro lado da rua, pode ser tarde demais, é longe pra cacete, quase um milagre".

Também não queria que ela me visse com os olhos marejados. Não olhei para trás, e talvez tivesse conseguido despistá-la. Talvez não. Mas, como sempre, fui embora com a sensação de ter perdido alguma coisa, de ter me enganado, de não ter consultado o horóscopo antes de sair de casa; como sempre, ao feitio de Giuliano Gemma, fui embora com a maldita sensação de ter feito a coisa certa, e de estar no lugar errado.

Pós S: Esse “Spaghetti” foi originalmente publicado na revista Bravo! Porém, dei uma boa mexida para republicá-lo no livro. E é essa versão que mostro aqui no Congresso em Foco, em primeira mão.

*Considerado uma das grandes relevações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário. É autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.


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