Cultura



Traços do futuro

por Daniel Piza (Clique aqui e leia o original)
Um traço cultural brasileiro que não compreendo bem é o da quase generalizada indiferença à arquitetura. Você pode até alegar que há outras áreas criativas, como a música erudita, em que o Brasil não vai tão bem; assim como Niemeyer é o nome quase único em qualquer referência internacional à arquitetura brasileira, temos Villa-Lobos e poucos mais. Mas convenhamos que a música de orquestra e câmara envolve mais intensamente a posse de uma tradição contínua e sólida. E o assunto é debatido e cultivado em alguns círculos. A arquitetura, não; mesmo pessoas bem informadas raramente falam sobre ela. O analfabetismo arquitetônico vigora, muita gente até se orgulhando disso. Talvez porque nossas cidades surgiram em booms, em surtos descontrolados, dar importância a ela sempre pareceu fútil – para alegria dos engenheiros.

Em metrópoles como Berlim, Londres ou Nova York uma construção nova, de porte, sempre se torna “the talk of the town”, o assunto da cidade, e seu projeto é debatido em detalhes pela imprensa toda, não apenas a especializada. No Rio ou em São Paulo isso só acontece raramente, sobretudo quando o prédio chama atenção por destoar prepotentemente do entorno. Caetano Veloso, por sinal, se esqueceu disso em sua bela canção Sampa: menciona “a força da grana que ergue e destrói coisas belas”, mas não a força da grana que ergue coisas feias – fato muito mais corriqueiro, como não me deixam mentir os prédios “neoclássicos”, falsos como uma coluna de gesso, que continuam a dominar nas grandes construtoras. As faraônicas torres que se erguem acima do shopping Cidade Jardim, por exemplo, motivam muxoxos aqui e ali, mas nunca vi um debate mais extenso em lugar nenhum. E, puxa, Caetano cantou em seu lançamento.

Ausência de debate, claro, é o que explica que até hoje a obra de Niemeyer dispare apenas declarações monossilábicas de amor ou ódio, de lado a lado, o que não é debate; não existem pontos de ponderação, meio-termo que não seja medo de opinar. Santo para muitos e diabo para poucos, ele exerceu ampla hegemonia sobre as obras públicas de relevo nos últimos 50 anos e, até pela importância mundial que adquiriu, tem poucos herdeiros reais. Outros grandes nomes da arquitetura brasileira, como Lina Bo Bardi, João Filgueiras Lima, Paulo Mendes da Rocha e Gregori Warchavchki, aparecem sempre em segundo plano. Mesmo nossa arquitetura colonial, cujo grande nome é Aleijadinho, parece um episódio isolado, como se as curvas de Niemeyer não tivessem brotado dali e sim das montanhas cariocas ou formas femininas. “Desniemeyerizar” o debate brasileiro faria bem até ao próprio Niemeyer.

Aos poucos, porém, essa situação começa a mudar. A chamada grande imprensa tem dado mais páginas ao tema, sites e revistas especializadas têm sido criados ou renovados – com linguagem técnica, mas não academicista – e as editoras e livrarias passaram a dar mais atenção aos livros. Uma dessas editoras é a Cosac Naify e um desses livros é o do arquiteto e ensaísta espanhol Rafael Moneo, Inquietação Teórica e Estratégia Projetual, um título chato que sugere o contrário da escrita acessível e agradável lá de dentro. Moneo analisa a arquitetura de seu tempo e das mais diversas nacionalidades, outra coisa rara no Brasil. Examinando obras e projetos de Stirling, Venturi, Aldo Rossi, Eisenman, Siza, Gehry, Koolhaas e Herzog & De Meuron, ele traça a história da arquitetura das últimas décadas do século 20 e mostra que “pós-modernismo” não serve para explicá-la em sua riqueza.

Quando fala sobre meus três preferidos dessa lista, o português Álvaro Siza, o americano Frank O. Gehry e os suíços Herzog & De Meuron, Moneo usa palavras como complexidade e fluidez para descrever uma arquitetura que, beneficiada em parte pelos recursos da computação, vê os prédios como locais de uma experiência humana, de uma fruição narrativa em que nem tudo pode ser classificado como “útil” ou “decorativo”, de tão integrados os elementos. Interior e exterior se confundem, numa combinação elaborada de movimento e unidade. O maior exemplo é o Guggenheim de Bilbao, em que o exterior multifacetado e cinemático de Gehry revela um interior organizado, amplo, com o que Moneo chama de “nova espécie de monumentalidade”. É uma pena que o livro não chegue a obras como a Fundação Iberê Camargo, de Siza (que Moneo viu apenas em projeto, admirando muito), e os estádios Allianz Arena em Munique e Ninho de Pássaros em Pequim, ambos do escritório suíço.

Herzog & De Meuron, por sinal, projetam um teatro de dança para a cidade de São Paulo e, assim como aconteceu com a Cidade da Música que Christian de Portzamparc desenhou para o Rio (ou como o Guggenheim que Jean Nouvel ia fazer e não fez), já há quem critique a contratação de estrangeiros. Bem, desde o pai de Aleijadinho até o “nosso” Niemeyer, arquitetos vivem fazendo obras em outros países. Uma arquitetura brasileira é simplesmente uma arquitetura feita por um brasileiro, o qual sempre levará sua história pessoal para as formas mais puras, sem precisar pendurar crachá de suas origens. Tomara que a dupla suíça faça um bom trabalho e que nossos políticos não queiram tolher sua criatividade nem superfaturar sua construção.

Com essa abertura mental, afinal, quem sairá ganhando é a cultura brasileira, porque mais gente aprenderá a gostar da arquitetura atual – e há bons arquitetos brasileiros atuais, alguns bem jovens, prontos para ocupar os espaços que a opinião pública e o mercado ainda não lhes dão. É preciso que a força da grana erga de fato coisas belas, mesmo que enfrente o preconceito de uma maioria para a qual a arquitetura só vale quando simétrica, previsível e ornamentada, uma forma ortogonal cuja função única é acomodar, jamais inspirar. Muitos não sabem, mas ninguém fica indiferente à arquitetura.

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