Brasil

O Meu Bolinho

Maria Helena Rubinato
Proust mergulhou no mais fundo de sua memória ao mordiscar uma madalena, na hora do chá. O rio caudaloso de fatos que tomou conta do autor, as reminiscências involuntárias que despertaram nele momentos e fatos de sua infância, tudo por conta do sabor desse bolinho mergulhado no chá, são uma magnífica descrição de um mistério que nos tantaliza até hoje: o que pode nos trazer de volta, nítido, vivo, o tempo que consideramos perdido nas dobras do passado?
Custei a descobrir o que despertou em mim, ontem, a tarde inteira, cenas de um filme italiano da década de 70, suas imagens sombrias, Mastroianni de padre, Gian Maria Volonté absolutamente hermético, um convento em lugar desconhecido, uma ambiência claustrofóbica, a menção aos exercícios espirituais de Loyola, tudo assim embaralhado, eu querendo me abstrair e a lembrança do filme ali, firme e forte.
De repente, recordo a foto de Eduardo Paes dentro de um carro, com o vidro fechado, a janela respingada de chuva, a luz batendo forte nas gotas d’ água, ficando em mim a impressão que o jovem candidato estava dentro de um refrigerador.
E como com a madalena de Proust, deu-se o milagre. Lembrei. A atmosfera daquele filme de 1976 é muito parecida com a atmosfera dos dias que correm. Tudo sombrio, estranho, misterioso, inexplicável. No filme, os políticos se reúnem numa espécie de convento subterrâneo para três dias de Exercícios Espirituais, conduzidos por um padre inaciano. São todos da Democracia Cristã, todos cidadãos acima de qualquer suspeita.
Serão? Vejam o filme. Chama-se “Todo Modo” no original, e “Juízo Final” é seu título em português. O filme é de 1976. Mais não conto.
Mas digo o que deslanchou em mim uma enxurrada de cenas desse filme extraordinariamente bom:
a) recado do delegado Protógenes para o presidente da República, transmitido por um advogado amigo do presidente, que não ocupa qualquer função pública;
b) reunião, em SP, numa tardinha de quinta-feira, dia útil, dos titulares dos seguintes ministérios: Casa Civil, Justiça, Trabalho, Direitos Humanos, Esporte, Educação, Cultura, Ciência e Tecnologia, Turismo, Igualdade Racial, enriquecida pela presença do governador de Pernambuco, cuja pauta era a salvação da candidatura de Marta Suplicy;
c) telefonema interurbano de um senador para seu gabinete no Senado Federal, atendido por um funcionário de outro gabinete, o da Segurança Institucional da Presidência da República!;
d) evento da campanha de Marta Suplicy, amanhã, que contaria com a presença do presidente Lula, cancelado porque o presidente embarca para viagem internacional, mas esqueceram de avisar ao porta-voz do presidente que continua a dizer que ele só embarca no domingo;
e) o carro, cuja janela me pareceu um container congelado, trazia Eduardo Paes da Base Aérea de Santa Cruz, onde o distinto candidato se encontrara com o presidente da República a fim de lhe pedir desculpas, compungido, pelo que disse dele e de seu filho biólogo, durante a CPI do Mensalão. Pedido de desculpas também registrado em carta dirigida à Senhora Marisa Letícia Lula da Silva, mãe do atacado, que foi entregue à primeira dama em mãos, por seu marido, o primeiro mandatário da Nação;
f) a tsunami e a marola.
Diante do noticiário esquisitíssimo do qual dei um breve resumo acima, a única notícia objetiva e consistente foi o apoio de Oscar Niemeyer à candidatura de Fernando Gabeira. Niemeyer é, acima de tudo, um carioca com mais de 100 anos, que viveu criando coisas belas e sonhando formas fantásticas, para tornar as cidades mais humanas e agradáveis. Um homem assim, nesse estágio em que está a cidade onde nasceu, ia votar em quem?
Vamos lá, amigos, essa foi a melhor notícia do dia de ontem! A única clara, objetiva, consistente, sem subterfúgios, que não veio de um subterrâneo cinza e estranho como o de “Todo Modo”. (Do Blog do Noblat)

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