Crônica

A morte não precisa das cinzas do carnaval

Marcelo Mirisola*
No primeiro caso, falou-se em pobreza, racismo e de um suspeito jogo político envolvendo o Exército, o vice-presidente da República e o seu candidato a prefeito na cidade do Rio de Janeiro, o ex-bispo e senador Marcelo Crivella (PRB-RJ). Três homens morreram. No segundo caso, especulou-se quanto à legitimidade de um PM fazer a segurança da noitada para o filho de uma promotora ameaçada de morte. Não quero, aqui, repetir o que se falou e o que se especulou à exaustão ao longo dessas semanas. Em pouco tempo os assuntos estarão datados, e as estatísticas do IML – para todos os efeitos – são mais veementes do que os lugares-comuns.

No primeiro caso, não foram “somente” três negros e pobres entregues à sanha de traficantes por um tenente do Exército que perderam a vida. Consta que o tenente aloprado não curtia funk. Os três eram funkeiros. No caso da boate na zona sul, não foi "apenas" o estudante rico e branco de promissor futuro blindado, que levou um tiro no peito. Quem morreu foi o playboy.

Creio que, antes de se tornarem vítimas, tanto os funkeiros do morro da Providência como o playboy da boate Baronetti eram – e continuam sendo – protagonistas dessa história. Difícil considerá-los vítimas como, por exemplo, era vítima uma esposa assassinada em flagrante adultério no ano de 1956. Existe uma incompatibilidade entre o fato e a questão. Existe outro tempo, e lugar. O tempo é o dos assassinos. E o lugar é o da barbárie, onde a idéia do Estado é uma abstração, portanto o Estado não existe. Não existem realejos. Nesta terra devastada, os chás beneficentes e todos os penduricalhos são dispensáveis, inclua-se aí a família e o choro das mães. Não sei se convém dizer que existe uma outra lógica para entender os dois casos. Mas vá lá. Vamos chamar de código paralelo ou de uma guerra suja, cujas partes envolvidas desdenham daquilo que um dia convencionou-se chamar sociedade organizada. A serpente finalmente saiu do ovo.

Pobres, pobres mães. Que não choram mais o cadáver dos filhos, mas o defunto de uma época desconhecida e esquizofrênica. Aliás, é curioso notar que a única compatibilidade que existe entre a figura antiga do cadáver de narinas de algodão e os músculos adquiridos na academia de musculação é a pobreza da rima – e mais nada. O luto não serve mais para vestir o novo, há um descompasso e um pragmatismo gelado no ar. A morte não precisa mais das cinzas do carnaval. A morte perdeu a eloqüência, e perdeu a elegância.

Por isso que o filme Tropa de Elite fez e faz tanto sucesso. Ele anuncia que a oratória de Ruy Barbosa e o famigerado Estado de Direito simplesmente não existem para os lutadores de Jiu-Jitsu, nem para os funkeiros, muito menos para a “galera” da pedofilia no Orkut. O Brasil é um retrato na parede que não deixou nenhuma saudade. Carlos Drumonnd de Andrade não existe para quem tem menos de trinta anos, está desempregado e mora do lado de lá da Ponte João Dias. O lado de lá – desculpem o trocadilho – não está nem aí para Montesquieu. Ou melhor, Montesquieu vive do lado de lá, disfarçado de Mano Brown (mas essa é outra história...). Mas do que eu falava?

Ah, lembrei. De roupas brancas, carnaval e morte.

Vamos lá. As passeatas e os abraços no Parque do Ibirapuera e na Lagoa Rodrigues de Freitas, bem como os apelos por mais tolerância e as respectivas missas ecumênicas realizadas depois do massacre de cada semana, são tão patéticos quanto as madames escandalizadas com as criancinhas que apodrecem no semáforo do shopping. O grito e o choro das mães e a “indignação” das autoridades são tão inócuos e paquidérmicos quanto o trânsito congestionado nas grandes cidades. A fantasia tropical e o azul do céu foram subtraídos pela realidade excludente de quem luta pela sobrevivência – não importa se o gueto é uma boate em Ipanema ou uma ONG no Jardim Pantanal.

Hoje em dia, no Brasil, até o fato de se “propor” soluções é recorrência de atraso. Não deu certo antes, e agora – lamento dizer – é tarde demais. O fato de aumentar o efetivo de policiais nas ruas, ou construir novos presídios de segurança máxima, é algo tão primário e agressivo quanto a violência que se pretende combater. Se levarmos em conta a ação e a reação dos envolvidos na matança do dia-a-dia (incluam-se todos os meios de matar: Igrejas, programa do Faustão e congêneres, clínicas de cirurgia plástica, clínicas de aborto, Parque da Mônica, etc ); bem, se levarmos em conta a aniquilação daquilo que um dia chamamos de “humano”, vai ficar difícil de encontrar um escaninho que sirva para tipificar este ou aquele crime: até a noção do que é crime está ultrapassada. Sabem por quê? Simples: porque quem morreu podia perfeitamente ter matado.

O nome disso – repito – é guerra. Não há câmera de vigilância, nem condomínio fechado, nem qualquer tipo de monitoramento e/ou sistema de segurança que garanta a tranqüilidade... dos culpados.

De qualquer forma, é bom olhar para os dois lados antes de atravessar a rua . Só pra terminar: espero que o pessoal da Fashion Week tenha prolongado a festa e a estadia em Paraty - que é um encanto de cidade. Desejo do fundo do meu coração que aproveitem a fofura do lugar, porque num futuro próximo vai faltar água e comida para todo mundo. Tenham todos uma boa semana.
Confira uma entrevista com Marcelo Mirisola na
TV cronópios

* Marcelo Mirisola, 42, é paulistano, autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô, O azul do filho morto (os três pela Editora 34), Joana a contragosto (Record), entre outros.

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