Opinião

Ambrose Bierce mostra os limites do cinismo como forma de pensamento

João Pereira Coutinho
Existem livros que li na adolescência e que nunca mais voltei a provar. Falta de tempo, com certeza. Excesso de medo, definitivamente. Haverá coisa mais triste do que reler um livro relevante que se revela, afinal, absolutamente irrelevante? É como descobrir, muitos anos depois, que uma namorada de boa memória foi infiel o tempo todo. Não mata. Mói.

Exatamente como Ambrose Bierce (1842-1913), velha paixão: reler o seu "Dicionário do Diabo" ainda provoca um sorriso aqui e ali. Mas como foi possível ter elevado este livro a bíblia cínica dos verdes anos? Falo em cinismo e falo bem.

Hoje, farejando o bicho, vejo que o melhor de Bierce está na elegância irônica, não no cinismo mecânico. Exemplo: como resistir à definição de "Macaco" ("Um animal arbóreo que se sente em casa em árvores genealógicas")?

Pena que o resto seja um deserto árido e, como todos os desertos, repetitivo. Avanço pelas páginas e, a certa altura, eu próprio já antecipo as definições. O amor é uma ilusão. A amizade é uma traição. O egoísmo é uma virtude. A orfandade é um benção. A democracia é uma piada. E etc. etc. –até ao abismo do tédio.

O problema, note-se, não está no amoralismo de Bierce. Está na previsibilidade. Uma previsibilidade que, ironicamente, converte o amoralismo numa forma postiça de moralismo. Um cândido do avesso não deixa de ser um cândido. A presunção de que vivemos "no pior dos mundos" é tão ridícula como a crença de que vivemos "no melhor dos mundos".

Ambrose Bierce é um moralista vulgar como qualquer moralista vulgar. E com uma séria desvantagem: ao contrário da sua "nêmesis", ele nem sequer tem a consolação de um dogma que esteja a salvo do dilúvio. Para repetir uma conhecida objeção aos limites do relativismo, se nada realmente interessa, rapidamente concluímos que o "Dicionário" é redundante. Bem escrito, sim, mas redundante.

Ler Ambrose Bierce, para além da curiosidade arqueológica, é uma lição sobre a falácia do cinismo como sistema. Ele é um recurso literário valioso quando usado com parcimônia e critério. Mas deixá-lo à solta como um potro selvagem, atropelando tudo que existe apenas porque existe, é uma forma de suicídio intelectual.

Evelyn Waugh, um falso cínico, dizia que ainda existem causas pelas quais vale a pena lutar contra. Mas como o próprio Waugh sabia e brilhantemente demonstrava, até para lutar contra é preciso lutar a favor.

Original aqui

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