Opinião

Como baratas em explosões nucleares, boçais resistem a mudanças políticas

Contardo Calligaris
Bob Dylan se sentiu honrado pelo prêmio Nobel de Literatura, mas deixou a Patti Smith a tarefa de representá-lo na cerimônia, cantando "A Hard Rain's a-Gonna Fall" (livremente: vão chover pedras).

A balada é um dos hinos da contracultura. A gravação que prefiro é de 1963, quando a voz de Dylan era um pouco menos nasal do que agora.

Em outubro de 1962, com a crise dos mísseis soviéticos em Cuba, o mundo passou perto de uma guerra nuclear entre as duas superpotências. Nasceu assim o mito de que a letra fizesse referência à chuva de resíduos radioativos, que se seguiria à explosão das bombas.

Essa interpretação mítica não condena a música a viver no antiquariato da Guerra Fria. Primeiro, Dylan desmentiu: a música tinha sido escrita antes da crise cubana. Segundo, o risco nuclear não terminou. Só precisa de um roteiro que combine, por exemplo, o terrorismo com os vários governos reféns do nacionalismo de pequenas burguesias frustradas.

Imagine que um grupo terrorista islâmico consiga montar e explodir uma bomba nuclear em Paris. O presidente François Fillon será obrigado a ripostar com o vigor exigido pela extrema direita da Frente Nacional (que, sem isso, ganharia o poder). Imagine que ele ataque a Síria: Putin poderia revidar para honrar sua amizade com Assad e para ganhar de volta as simpatias do mundo muçulmano em geral e fundamentalista em particular (perdidas nos anos 1980, na guerra da URSS contra o Afeganistão).

A França acionaria a aliança da Otan. Trump, por mais que goste de Putin, poderia achar que uma guerra é um bom jeito para distrair os brancos pobres que o elegeram e que, nesta altura, ele já terá ferrado economicamente.

Pronto, é um fim do mundo possível. Reveja os primeiros 20 minutos de "O Dia Seguinte" (1983), de Nicholas Meyer: a vida de todos parece normal, ninguém pensa que amanhã vai cair a primeira bomba.

Agora, tento entender por que Dylan não foi à cerimônia do Nobel e por que a canção escolhida foi "A Hard Rain's a-Gonna Fall".

Dylan é o grande poeta da contracultura dos anos 1960-70. Eu ainda penso, às vezes, que a revolução dos anos 1960 foi a única bem-sucedida do século 20 –a revolução que lutou contra o ódio tradicional pelo prazer, liberou os costumes e as escolhas de vida, combateu a estupidez sexista e nacionalista etc.

Além disso, como dizia um amigo que morreu de Aids na França nos anos 1980, foi uma revolução que não perseguiu ninguém, mas deixou todos mais livres –inclusive os boçais, livres para continuarem sendo boçais.

O prêmio a Dylan pareceria recompensar uma geração inteira, pela maneira como suas "vitórias" mudaram o mundo.

A ideia da "vitória" da revolução dos anos 1960 começou com a sensação de que a contracultura teria parado a guerra do Vietnã e, logo, acarretado a queda de Nixon. Depois disso, aos poucos, não houve menos guerras? Mais tolerância pelas diferenças? Um pouco mais de equidade? Não sei. O que houve, durante três décadas, foi uma volta ingênua da crença no progresso.

Mas hoje? Olhando para os EUA de Trump, para a Europa que se desfaz, para o agito de uma direita fascista mundo afora, surge a dúvida de que a vitória dos anos 1960 tenha sido apenas um show. Enquanto as bandas tocavam (e a gente dançava), os inimigos de sempre continuavam lá, nem sequer na sombra, conclamando idiotices e caretices e esperando voltar a impor suas frustrações como regra para todos.

Bob Dylan pode ter pensado que aceitar o prêmio significasse celebrar uma vitória que não aconteceu. E por isso mesmo ele pode ter escolhido "A Hard Rain's a-Gonna Fall", para lembrar que não só a contracultura não ganhou, mas talvez o pior esteja por vir.

Aqui, no Brasil, estamos especialmente bem colocados para entender: aparentemente, aconteceu com a contracultura e sua suposta vitória algo análogo com o que aconteceu com a democracia no Brasil.

Pensávamos ter conquistado uma democracia moderna, mas era apenas mais uma "modernização conservadora" (à la Barrington Moore Jr.). Quem sabe FHC, Lula e Dilma tenham pensado que os coronéis e os parasitas da máquina do Estado se extinguiriam por conta própria. Mas é a esperança democrática que está se extinguindo por conta própria –nem os coronéis, nem os parasitas.

Dizem que só as baratas sobrevivem a uma explosão nuclear. Os boçais também parecem sobreviver a qualquer mudança política e de costumes. 

Original aqui

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