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Democracia & ceticismo

“De que servem eleições se, nos temas essenciais – questões econômicas, financeiras e sociais – os novos governantes adotam a mesma política de seus antecessores?”

Márcia Denser
O ceticismo quanto às políticas democráticas como instrumento de justiça social generaliza-se em todo o mundo. Como observou recentemente Slavoj Zizek:”uma vez que a economia global está fora dos limites das políticas democráticas, qualquer tentativa de aproximá-la da democracia apressará o declínio desta. Então o que podemos fazer? Engajar-nos no sistema político existente, o qual – conforme o próprio Washington Post, através de sua porta-voz ultra-neo-conservadora, Anne Applebaum – não pode justamente cumprir essa tarefa?…”

Uma análise recente de Ignácio Ramonet da situação na UE – a bola da vez na cena geopolítica – evidencia com clareza o binômio democracia & ceticismo. Para ele, eis como a questão se coloca: François Hollande, ao enfrentar ditadura dos mercados, recuará, humilhado (assim, tipo Obama), ou abrirá uma disputa capaz de sacudir a Europa?

O fato é que a segunda alternativa não só nos parece impossível como ostensivamente risível (mais abaixo explica-se porquê). Lembrando, a propósito, a máxima de Maquiavel – “A maior força dos poderosos é a inércia dos povos” – a sensação é de asfixia em diversos países da UE: os cidadãos são estrangulados por restrições, reduções e golpes. Um sentimento acentuado pela constatação de que a alternância política não modifica o “furor de austeridade” dos governantes.

Na Espanha, a sociedade foi duramente penalizada pelas doses cavalares dos “remédios” ministrados, a partir de maio de 2010, pelo primeiro-ministro (“socialista”) José Luis Rodriguez Zapatero. Nas eleições de 20 de novembro, Mariano Rajoy, candidato do Partido Popular (PP, conservador) prometeu nada menos que “mudança” e “restabelecimento da felicidade” (sic). Mas, um dia depois de eleito, lançou-se a mais devastadora destruição de conquistas sociais da história da Espanha.

Idem Portugal que, em 2011, depois de submetido a quatro programas impopulares de “disciplina fiscal” e um “plano de salvamento às avessas”, derrotou o socialista José Sócrates nas eleições. Mas o novo chefe do governo, o conservador Pedro Passos Coelho afirmou, já em sua eleição, que cumpriria as exigências da UE, aplicando “uma dose ainda mais forte de austeridade”… Pois é, ironicamente, pela via democrática, a coisa vai de mal a pior.

Então de que servem eleições se, nos temas essenciais – questões econômicas, financeiras e sociais – os novos governantes adotam a mesma política de seus antecessores? Como não duvidar do próprio sistema democrático? Porque todos constatam que, nos marcos da UE, não há controle público sobre as decisões cruciais que irão afetar diretamente a vida das pessoas. E que as exigências – consideradas prioritárias – dos mercados, das agências de avaliação de risco e dos especuladores limitam severamente os princípios essenciais da República.

Muitos governos (de direita e de esquerda) estão agora convencidos que os mercados têm sempre razão, sejam quais forem as consequências para a população. Os mercados são a solução, e a democracia, o problema.

Os cidadãos convencem-se, cada vez mais, de que há, no interior da UE, algo como uma “agenda oculta”, ditada pelos mercados, com dois objetivos concretos:

1) Reduzir ao máximo a soberania dos Estados (em matéria orçamentária e fiscal);

2) Desmantelar o que resta do estado do bem-estar social (para transferir ao setor privado a Educação, Saúde e Previdência).

Segundo Mario Draghi, presidente do Banco Central Europeu (BCE), “o modelo social europeu está morto e quem tentar reverter a redução dos orçamentos sociais será imediatamente punido pelos mercados. O Pacto Orçamentário Europeu é um ‘enorme avanço’, porque graças a ele os Estados perdem uma parte de sua soberania nacional”. Impossível ser mais claro.

Os europeus regrediram a um regime de despotismo esclarecido. Para quê, então, votar, se estão condenados a eleger governos cuja missão limita-se a aplicar as diretrizes e tratados definidos de uma vez para sempre? O Pacto Orçamentário Europeu é um caso explícito de “dissimulação democrática”. Por que não se trava um grande debate público sobre seu conteúdo (atualmente em via de ratificação a portas fechadas pelos Parlamentos) que vai condicionar nossa vida?

Pode-se sair desta opressão “austeritária”? Ramonet, sobriamente, considera que talvez a eleição presidencial francesa abra perspectivas, uma vez que Hollande propõe acrescentar ao Pacto Orçamentário um conjunto de medidas em favor do crescimento econômico. Ele conclui: “Ainda que sejam exigências mínimas, insuficientes e sempre acompanhadas de um discurso ambíguo sobre a ‘flexibilização do mercado de trabalho’ e a ‘moderação social’, Hollande desafia o dogma estabelecido pela chanceler alemã Angela Merkel e pelo Bundesbank, que estão na origem das políticas de ‘ajuste’ da UE. É uma mudança não desprezível, se se compara esta posição à atitude submissa de Nicolas Sarkozy, descrito por muitos como ‘lacaio de luxo dos mercados’”.

Francamente, confesso meu ceticismo diante da vitória do esquerdista François Hollande, tão festejada em toda a França (acho que muito mais que sua vitória, os franceses comemoraram a “demissão” coletiva de Sarkozy, vergonha global que já foi tarde!).

Mas já vimos este filme. Bem ou mal comparando, Barak Obama, em 2009 também foi festejadíssimo no mundo todo e deu no que deu: simplesmente continuou a política de seu antecessor Bush e, pior, acabou acumulando ainda mais pontos à direita, isto é, para os membros do Tea-Party, em razão dos sucessivos fracassos legislativos, sem contar sua tremenda ambiguidade, decorrente duma evidente fraqueza política.

Publicado originalmente no "congressoemfoco"

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