Ramalhete de "Causos"
Peixe oferecido: tá podre ou tá moído
José Ronaldo dos Santos
É preciso saber que o alimento também tem um valor simbólico. Conforme dizia o meu bisavô Armiro: "Comida e bebida é muito mais do que sustância". Seja ela uma refeição ou um cafezinho, sempre pode dizer algo mais, que não é difícil de transparecer espontaneamente.
O alimento, ou melhor dizendo, a oferta de uma iguaria (almoço, café, fruta...) para alguém significa muito para o caiçara, faz parte da acolhida e da estima. Mas também pode representar somente um pragmatismo que une - pasmem! - o apreço e o preço. Difícil de entender? Então, atenção a este causo contado pelo próprio nhonhô Armiro.
"Num um tempo já meio distante, numa manhã bem bonita, quando o tio Zaca era um dos poucos moradores da Prainha do Peres, o mar amanheceu para ser admirado. Da janela de sua casa, no começo do morro, aquela imensidão de água era, nas janelas dos olhos, uma lagoa sem risco nem de brisa. As canoas, antes de irem para os ranchos, começavam a secar no jundu depois da visita aos tresmalhos. As mulheres cuidavam do pescado, inclusive a Maria, sua companheira de tantas farinhadas. Naquele dia a mistura seria a base de escaldado de galinha. Quem não gostasse disso, tinha bentrecha de cambeba. Aos mais enjoados que comessem ovo ou se virasse com qualquer outra coisa.
Nesse dia, tio Zaca estava ranzinza como de costume. De longe falava para a mulher, reclamava que tinha feito muito café, desperdiçando pó e garapa, que ninguém conseguia tomar tudo aquilo e mais outras picuínhas. A sua companheira ajeitava o chapéu de palha de bananeira, espiava em direção à janela, percebia que o marido estava falando, mas não entendia nada por causa do barulho da água na bica. Pensava: decerto não é nada sério, senão... ele vinha aqui perto falar.
Ao se virar para o lado do mar, viu, remando normalmente, da direção da Lagoinha para a Praia Grande do Bonete, o seu compadre Zé Roseno. Junto ao banco do mastro do traquete ia um saco branco com um pouco de mercadoria comprada, na Venda do Anjo, no Sapê, com o recurso da última farinhada. Voltando naquela hora era sinal que o dia dele tinha começado muito cedo.
O Zé remava sem nenhum esforço; passando no largo da Prainha, tirava uma reta, já que não havia nenhuma viração que o estorvasse. De repente ele escutou alguém chamando. Não custou nada para que avistasse o Zaca. Da janela ele gritava e abanava as mãos. Logo se preocupou sobre o que podia estar acontecendo. A alternativa foi quebrar a linha de rumo, puxar a canoa acima do lagamar junto com a pouca carga, subir o morro cheio de bastoeiros em floradas cheirosas para acudir o compadre. O que vem a seguir foi, segundo o nhonhô, a conversa entre os dois:
- O que foi que aconteceu, compadre Zaca?
- Não é nada para se desesperar, compadre Zé! Eu só chamei você aqui para tomar um café comigo.
- Mas eu não quero café! Deixa para outra ocasião, senão atrapalha o almoço.
- Ah, compadre! Não me faça esta desfeita! Tome. Tome. Tome ao menos um gorpe intirume!
Depois de tanta insistência, o Tio Zaca arrematou: - Tome para não desperdiçar! Porque se ninguém tomar, a Maria vai jogar fora mesmo!
Afinal, o Zé Roseno tomou o café porque sabia que isso causaria um alívio no compadre.
Em seguida, desceu o morro, rolou a canoa pela areia grossa, retomou o rumo quebrado. Logo estava no mesmo compasso. Enquanto a vista vadiava pelo espaço e escutava o canto do sabiá-laranjeira que vinha do pé de jarobá da costeira, ele puxava da memória um dizer antigo: “Peixe oferecido: tá podre ou tá moído”.
Sugestão de leitura: Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda.
Boa leitura!
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José Ronaldo dos Santos
É preciso saber que o alimento também tem um valor simbólico. Conforme dizia o meu bisavô Armiro: "Comida e bebida é muito mais do que sustância". Seja ela uma refeição ou um cafezinho, sempre pode dizer algo mais, que não é difícil de transparecer espontaneamente.
O alimento, ou melhor dizendo, a oferta de uma iguaria (almoço, café, fruta...) para alguém significa muito para o caiçara, faz parte da acolhida e da estima. Mas também pode representar somente um pragmatismo que une - pasmem! - o apreço e o preço. Difícil de entender? Então, atenção a este causo contado pelo próprio nhonhô Armiro.
"Num um tempo já meio distante, numa manhã bem bonita, quando o tio Zaca era um dos poucos moradores da Prainha do Peres, o mar amanheceu para ser admirado. Da janela de sua casa, no começo do morro, aquela imensidão de água era, nas janelas dos olhos, uma lagoa sem risco nem de brisa. As canoas, antes de irem para os ranchos, começavam a secar no jundu depois da visita aos tresmalhos. As mulheres cuidavam do pescado, inclusive a Maria, sua companheira de tantas farinhadas. Naquele dia a mistura seria a base de escaldado de galinha. Quem não gostasse disso, tinha bentrecha de cambeba. Aos mais enjoados que comessem ovo ou se virasse com qualquer outra coisa.
Nesse dia, tio Zaca estava ranzinza como de costume. De longe falava para a mulher, reclamava que tinha feito muito café, desperdiçando pó e garapa, que ninguém conseguia tomar tudo aquilo e mais outras picuínhas. A sua companheira ajeitava o chapéu de palha de bananeira, espiava em direção à janela, percebia que o marido estava falando, mas não entendia nada por causa do barulho da água na bica. Pensava: decerto não é nada sério, senão... ele vinha aqui perto falar.
Ao se virar para o lado do mar, viu, remando normalmente, da direção da Lagoinha para a Praia Grande do Bonete, o seu compadre Zé Roseno. Junto ao banco do mastro do traquete ia um saco branco com um pouco de mercadoria comprada, na Venda do Anjo, no Sapê, com o recurso da última farinhada. Voltando naquela hora era sinal que o dia dele tinha começado muito cedo.
O Zé remava sem nenhum esforço; passando no largo da Prainha, tirava uma reta, já que não havia nenhuma viração que o estorvasse. De repente ele escutou alguém chamando. Não custou nada para que avistasse o Zaca. Da janela ele gritava e abanava as mãos. Logo se preocupou sobre o que podia estar acontecendo. A alternativa foi quebrar a linha de rumo, puxar a canoa acima do lagamar junto com a pouca carga, subir o morro cheio de bastoeiros em floradas cheirosas para acudir o compadre. O que vem a seguir foi, segundo o nhonhô, a conversa entre os dois:
- O que foi que aconteceu, compadre Zaca?
- Não é nada para se desesperar, compadre Zé! Eu só chamei você aqui para tomar um café comigo.
- Mas eu não quero café! Deixa para outra ocasião, senão atrapalha o almoço.
- Ah, compadre! Não me faça esta desfeita! Tome. Tome. Tome ao menos um gorpe intirume!
Depois de tanta insistência, o Tio Zaca arrematou: - Tome para não desperdiçar! Porque se ninguém tomar, a Maria vai jogar fora mesmo!
Afinal, o Zé Roseno tomou o café porque sabia que isso causaria um alívio no compadre.
Em seguida, desceu o morro, rolou a canoa pela areia grossa, retomou o rumo quebrado. Logo estava no mesmo compasso. Enquanto a vista vadiava pelo espaço e escutava o canto do sabiá-laranjeira que vinha do pé de jarobá da costeira, ele puxava da memória um dizer antigo: “Peixe oferecido: tá podre ou tá moído”.
Sugestão de leitura: Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda.
Boa leitura!
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