Coluna do Rui Grilo

Galileu Galilei

Rui Grilo
Quando penso na minha identidade e na minha vida, sempre me lembro da minha mãe como um modelo de luta contra as adversidades. Não a vejo como uma pessoa perfeita mas como uma pessoa cheia de vida, que dificilmente entregava os pontos. No entanto, era semianalfabeta.

Talvez, por saber o quanto a vida é difícil para aqueles que não sabem ler, lutou bravamente para que todos os nove filhos estudassem.

Mas também lembro dos meus avós paternos sentados na varanda, sempre lendo um jornal ou fazendo palavras cruzadas, coisa muito rara porque a grande maioria era analfabeta. Naquela época havia almanaques de palavras cruzadas classificados pelo nível de dificuldade. Para minha avó, o desafio era escolher os que apresentavam o maior nível de dificuldade.

Meu avô, foi um dos fundadores da minha cidade natal e era pessoa muito conhecida. Veio muito novo de Portugal e conseguiu estudar no Colégio Sagrado Coração de Jesus, uma das escolas mais tradicionais da Capital. Três filhas estudaram nos melhores colégios da Capital, enquanto outras duas eram uma espécie de “gata borralheira” cuidando da casa e da fazenda. No entanto, o maior grau de estudos não assegurou às três a percepção dos novos tempos e a necessidade de defender o direito do outro. O sacrifício das mais velhas garantiu o privilégio das mais novas.

Parece um detalhe besta, mas essa vivência em família me fez perceber mais profundamente as fraturas existentes na sociedade.

Em Sorocaba, a antiga “Manchester Paulista”, maior centro têxtil do Brasil, um pequeno grupo de famílias dominava toda a produção e explorava com mão de ferro a nascente classe trabalhadora. Geralmente, como a família toda trabalhava na mesma fábrica, as pessoas sujeitavam-se a todo tipo de exploração, pois sabiam que se denunciassem as arbitrariedades, toda a família perderia o emprego e seria muito difícil conseguir outro. Parece que circulava entre as empresas uma lista dos empregados que “causavam problemas”.

Meu pai era um vaqueiro e, imagino que, ao mudar para Sorocaba e se transformar num operário de fábrica, sofreu um choque muito grande.

Minha família sofreu esse tipo de pressão e, em virtude disso, meu pai adoeceu e nunca mais se recuperou. Também sofri e carrego dentro de mim essa terrível experiência.

Uma norma dessas empresas é que os operários não podiam ser sindicalizados.

Para fazer frente a essa opressão, a JOC – Juventude Operária Católica – estimulava a associação “por fora”, sem o desconto na folha de pagamento. Cada um pagava “clandestinamente” direto ao sindicato. No entanto, as empresas infiltravam os “pelegos” dentro dos sindicatos para poder controlar a ação dos operários, especialmente das lideranças. Por isso, a JOC formava lideranças e estimulava-as a participar nas diretorias dos sindicatos e nas assembléias.

Nessa época, além da JOC, cheguei a participar da JEC – Juventude Estudantil Católica – e JUC – Juventude Universitária Católica, entidades pelas quais passaram muitas lideranças políticas, entre os quais José Serra, que hoje assume o lado contrário.

Durante o golpe militar vi muitos colegas serem demitidos do trabalho e encontrarem muita dificuldade para sobreviver porque constavam das listas de subversivos, pessoas que apoiavam idéias “comunistas” e que comiam criancinhas.

Após 10 anos de serviço, o trabalhador adquiria estabilidade e não podia ser demitido sem o pagamento de uma polpuda indenização. Então, as empresas demitiam antes. Para eliminar essa situação, facilitando a vida dos patrões, o governo militar criou o FGTS – Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, ao qual os trabalhadores antigos poderiam aderir ou não. Houve muita resistência por parte dos trabalhadores antigos, mas as empresas usaram todo tipo de coação, tornando um inferno a vida de quem resistia à adesão.

Em conseqüência disso, fui forçado a assinar um acordo e vim para São Paulo onde ingressei no magistério municipal e estadual. O contato com meus alunos do Mobral ( Movimento Brasileiro de Alfabetização), vindos dos mais diferentes lugares do Brasil, pessoas de grande sensibilidade e de grande experiência de vida, ajudou-me a superar essas dificuldades e a me adaptar ao ritmo da Capital.

Nesse período ocorreram as grandes greves do magistério, com duração de mais de 60 dias. Também, nesse período, apesar da luta sistemática pela ampliação de vagas, a Secretaria de Educação Municipal adotou uma política de fechamento dos cursos noturnos.

Várias escolas ao redor da minha já haviam sido fechadas. Imediatamente, com o auxílio das igrejas e dos movimentos sociais, passamos milhares de abaixo assinados. Imediatamente começou a coação. Uma supervisora de ensino me disse que se continuasse a minha ação, sofreria punição. Após a saída dela, com as pernas bambas de medo, relatei aos professores a ameaça. Recebi o apoio de quem não esperava e a quem sou agradecido até hoje.

O mais curioso é que nós, professores I, trabalhávamos no primeiro período e não seríamos afetados diretamente. Os professores II, que seriam afetados pela diminuição de cargos, ficaram com medo das retaliações e se negaram a ir com a comissão de pais à Secretaria de Educação. Durante a audiência os pais questionaram o secretário sobre a atitude da supervisora e ele se comprometeu a afastá-la da supervisão da escola e a interromper o fechamento das escolas. A audiência ocorreu numa sexta feira e na terça feira foi publicada uma portaria impedindo o fechamento de qualquer curso noturno. Foi um dos momentos mais importantes da minha vida.

Esses fatos mostram que onde há o ser humano há o acerto e o erro, o bem ou o mal. E me lembro de Galileu Galilei que, ao constatar uma nova verdade foi obrigado a enfrentar o poder da Igreja e da Inquisição, quase pagando com a própria vida. E que a Igreja só recentemente reconheceu o seu erro.

Rui Grilo
ragrilo@terra.com.br
 
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