Coluna do Mirisola

Buda no Bixiga

“Regra geral, como bom zen-budista, é o que faço: mando pro inferno e, se o sujeito não estiver satisfeito, explico-lhe como se faz pra chegar lá. Sob esse aspecto, sou mais preciso e eficiente que um navegador GPS guiado pelo arcanjo Gabriel”

Marcelo Mirisola*
As palavras do monge “leveza ao coração e clareza imperturbável para a mente” reverberavam nos meus miolos. No palco, Marião, recuperado da merda toda, cantava: “Pensando bem, hoje até que eu tô legal”.

Eram umas três horas da madrugada, e eu estava lá no café Aurora, encostado na parede, com o coração leve e a mente tinindo e devidamente aditivada por uma Smirnoff bem gelada. Clareza imperturbável. A vodca é uma bebida cirúrgica que divide os acontecimentos em lâminas, em camadas de antes e depois agindo no aqui e agora. No Tibete, os monges devem chamar isso de “iluminação”, no Centro Espírita do Cambuci de “clarividência”, e lá no Bixiga, no Café Aurora, chamamos o garçom, e pedimos mais uma.

Não, não era um garçom, mas uma garçonete. Linda, àquela altura parecia Scarlett Johansson. Buda – vejam só – ensina que jamais devemos desperdiçar a extraordinária oportunidade de um nascimento humano, quiçá de renascimento, e então eu pensava que o bom e velho Sidarta (antes da iluminação) gostaria de estar lá no Show do Saco de Ratos, pra ter a oportunidade de ver um cara que ressuscitou e que continua do mesmo jeito, brucutu e fundamental: “Não vai pensar em mim com outro pau na sua boca”.

Se Vinicius de Moraes fosse budista, diria que o rock and roll é uma forma de oração.

“Uma base virtuosa – segundo o budismo – “traz grande felicidade e liberação em si mesmo”. Também acho, sobretudo se a mulher caprichar na gangorra: a base virtuosa a gente improvisa com o azulzinho.

Buda – consta – “delimitou cinco áreas de moralidade básica que levam a uma vida consciente”. Essas regras de treinamento, dizia o monge – que depois da quarta dose de vodca havia se transformado na garçonete –, “não são mandamentos”.

Ué ? Interrompi minhas conjecturas, e inquiri a garçonete: “Qual o problema religioso de cagar regras?”

Se a gente for pensar bem, todas as tábuas rasas e profundas o fazem: a Bíblia, o Alcorão, o Livro dos Espíritos, o Torá e até a Igreja do Surfista Universal do Reino da Parafina têm suas regras. Normal. O fato de uma religião sugerir que é mais tolerante que as outras já é uma ameaça, você não acha, Scarlett?

A garçonete discordou. Me garantiu que um budista podia ser luterano, taoísta ou até mesmo trabalhar disfarçado numa creche da Igreja Católica, mas o contrário seria impossível. Ah, tá. Além de ter um escorpião tatuado na virilha – pensei –, essa gostosa também deve ter lido Borges... Enquanto isso, lá no palco, Marião trocava umas idéias com Sidarta: “Se tá perto de mim, tá mais longe do céu”.

Primeiro Preceito budista, segundo a garçonete:

“Honrar toda a vida, não agir por conta do ódio ou da aversão de tal modo que cause mal a qualquer criatura viva” – era exatamente isso o que eu estava fazendo no Café Aurora.

Aliás, mais do que isso: estava celebrando a vida do meu amigo que voltou da morte. E também celebrava aquele ex-ambiente enfumaçado e o fato de que – ainda que a garçonete não quisesse dar pra mim –, mesmo assim, eu ia dizer I love you, baby pr’alguma putinha da Augusta. O primeiro preceito não deixava dúvidas: “trabalhar para desenvolver uma reverência e amor pela vida em todas as suas formas” – claro que sim, em primeiro lugar, a reverência: pode estar engarrafada na forma de Smirnoff ou de Jack Daniels, e depois o amor que é uma consequência natural na ordem das coisas. O Café Aurora havia virado um mosteiro, e o Mário orava lá do palco: “Rezo a Deus que me perdoe/ meu vício doente, seu corpo nu”.

Também havia alguma coisa no primeiro preceito que dizia que devíamos respeitar alfaces e que também era nossa obrigação poupar nossos irmãozinhos suínos da feijoada de sábado. Difícil, e mais difícil ainda era conter aquela vontade de dar um tiro na sapatona do 801 toda vez que ela aplicava Ana Carolina nos meus cornos às sete horas da manhã. O problema consistia no fato de que eu – ainda – não havia despertado para a lucidez, então achei melhor pular para o segundo preceito.

Um dia, depois de me entender com as quatro verdades, pensei, vou apresentar Ângela RôRô a essa sapatona ignorante do 801. Sidarta faria o mesmo se morasse no 701.

– Qual a graça de levitar sem zoar?

O segundo preceito diz que não devemos tirar o que é dos outros. Que precisamos “abandonar a avidez. Que devemos estar cientes do sofrimento causado pela exploração, injustiça social, roubo e opressão, e que devemos nos comprometer em cultivar a bondade amorosa e aprender meios de trabalhar para o bem-estar das pessoas, animais e plantas”. Tirando a parte das plantas, das colunistas sociais, dos cadernos ilustrados e dos animais, assino embaixo, e acho que a garçonete do Café Aurora também concordava. Porque eu caprichava nas cantadas baratas, e ela, ato contínuo, caprichava nas reboladas e no choro da próxima dose de vodca.

Generosidade é o que não faltava naquele lugar. Nem a mãe do Augusto Sérgio que deu um nome composto para ele, ficava de fora do desapego coletivo: “Meu nome é Augusto Sérgio/ eu tenho um nome duplo/ não é a minha culpa/ minha mãe é que é filha da puta”.

Quis prometer a mim mesmo que ia pensar na questão das plantas, mas preferi pedir a garçonete em casamento, e ela me trouxe mais vodca.

O terceiro preceito budista diz que devemos nos abster da má conduta sexual. Sob esse aspecto, sempre fui papai-e-mamãe de carteirinha. Até um pouco preguiçoso. Por trás, só quando erro a mira mesmo, e nada de muito contorcionismo. Não posso dizer que o terceiro preceito me era alheio, porque, embora não soubesse demonstrar, sempre amei demais, quem ama não pechincha.

Mas isso nem precisava de Buda pra me alertar; foi o Pascoalão, meu avô desossador, quem me ensinou a ser cavalheiro com as mulheres e pagar o preço que elas pedem: “É urgente”, eu ouvia lá do palco: “E´ urgente que eu beba do seu leite/ que eu não declare o que eu sinto/ que eu tire pra fora meu pinto/ que só abra a porta quando a polícia chegar...”

Acho que o Mário pensava da mesma maneira. O quarto preceito diz que devemos nos abster da palavra falsa. Que devemos nos dedicar a cultivar a palavra amorosa, gentil e verdadeira.

Ora! Não faço outra coisa na vida, com exceção dos momentos em que escrevo minhas crônicas aqui no Congresso em Foco. Enquanto isso, ouvia o Mário concordar comigo lá do palco, didaticamente:

“Você diz que eu sempre fui um filho da puta
Que eu ligo de madrugada completamente chapado
que eu nunca quis ser o seu namorado
Vê se não banca a louca
não vai pensar em mim
com outro pau na sua boca”

Também havia prometido para mim mesmo – depois que a garçonete me mostrou o cofrinho – a escutar as pessoas com o propósito de trazer alegria e felicidade a elas e aliviar seus sofrimentos: eu empenharia qualquer coisa para desfrutar das badalhocas daquele cofrinho, ah por Deus, por Maomé, por Tutatis!

Almas, corpos, tudo – garantia Buda – tudo estava ardendo. O recém-desperto disse isso no segundo sermão, o do fogo, na mesma época em que Heráclito de Éfeso assegurou que tudo era fogo. E tudo era ilusão também. Depois de derrotar a si mesmo e às falanges demoníacas, Sidarta não existia mais; havia colocado a roda da lei em movimento: almas, corpos, peitinhos e xotas crepitando. Tudo era/e é irreal, nada existe: ora, se é assim, qual o mal de sonhar com a travessia de 60 rios ou ser a ponte que atravessa esses rios? O poeta celta Taliese havia de concordar comigo, ele que, no ano de 216 AC, muito antes de ser poeta, foi filho de Amílcar Barca e partiu da Espanha, cruzou os Alpes no lombo de elefantes e ameaçou os portões de Roma para depois – vejam só – de mais de 1.200 anos morrer num acidente na via Dutra, em 1976, um ano antes de ver o seu Coringão campeão (bem feito), sendo que, agora e para sempre, estaria ao meu lado, ouvindo o som daqueles caras, e – é claro – chamava-se Ademir e queixava-se da falta de compreensão das mulheres.

– Olha só sua cor de musgo, Ademir. Você precisa tomar um sol.

Sugeri a ele um final de semana em Bertioga. A ideia da transmigração, pensei, combinava com a vodca e com o baixo do Watanabe e, já que era assim, eu partiria na direção dos soldados de Luis XVIII e desafiaria aqueles frouxos de peito aberto: “Quem tiver coragem que mate seu imperador!” – é claro que eles não iriam me encarar; diferente de Cleópatra, que dividiu seu leito comigo quando eu era apenas um confuso legionário romano, mas foda-se, o tempo passa, a lusitana roda e, depois da próxima dose, eu seria uma feliz badalhoca dentro do cofrinho da generosa garçonete.

– Fui dar uma mijada.

Se bem me lembro, depois da oitava dose, eu evitaria – segundo o terceiro ou quarto preceito (não lembro) – proferir palavras que pudessem causar divisão ou discórdia. Difícil, eu ia tentar. Mas não podia fechar meus ouvidos prum velho motociclista xarope que praguejava contra a guitarra do Fábio Brum e dizia pro Pagotto ensinar a ele como é que se tocava aquela merda. O velho era engraçado.

Ela, Cleópatra (ou seria Buda encarnado na garçonete?) me dizia alguma coisa sobre reconciliação e também me garantiu que não devíamos medir esforços para resolver os conflitos dos homens. Refleti a respeito, e fiquei muito feliz ao constatar que alfaces não costumam se insurgir contra rabanetes, um problema a menos. Com relação a judeus e muçulmanos, eu achava bem difícil não ser cético e pessimista, mas nada era impossível. De qualquer modo, essa era uma hipótese meio vaga a se considerar num bar do Bixiga às três da manhã.

Mas, regra geral, como bom zen-budista, é o que faço: mando pro inferno e, se o sujeito não estiver satisfeito, explico-lhe como se faz pra chegar lá. Sob esse aspecto, sou mais preciso e eficiente que um navegador GPS guiado pelo arcanjo Gabriel. No caso das discórdias e dos conflitos mais comezinhos, sigo o exemplo do príncipe Sidarta (antes de ele ser Buda); ou seja, faço minhas trouxas e ponho o pé na estrada. E olha que, nessa vida, nunca tive filhos, nem palácios, nem um harém para abandonar.

– Sou muito gentil e tolerante, porra.

Se não inspiro confiança, alegria e esperança, o problema não é meu. O problema é dessa gente que não tem humor e não entende que existe poesia naquelas coisas que há pouco tempo julgávamos indispensáveis e que, depois de muitos anos, encontram-se perdidas “no vão do sofá”, aliás, esse blues do Fábio Brum e do Mário é lindo. E, por fim, o quinto preceito budista dizia que devíamos nos abster de tomar bebidas alcoólicas que pudessem perturbar nossa mente.

– Há controvérsias.

Como seguidor de Bodhidharma e do Dr. Smirnoff, acredito na iluminação – que alguns chamam de satori – despertada por uma cagada qualquer, um sobressalto. Uma intuição brusca, que eu evito chamar de “insight” porque acho uma viadagem. Se o cara estiver chapado – me parece óbvio –, as condições de voo e iluminação são mais do que beneficiadas, amém, evoé.

Se eu dissesse que tive um satori e vi São Mateus na resposta que o Edinho me deu quando lhe perguntei sobre a decisão do nosso amigo Paulinho Picanha de Tharso, vocês não acreditariam. Nem eu, porque Picanha de Tharso mais uma vez não iria conosco pro Rio de Janeiro no dia seguinte, e tudo era irreal. Vai daí que se levarmos em conta os satoris e sobressaltos proporcionados pelo álcool, esse quinto preceito é bem discutível e pode ter – no mínimo – algumas interpretações bizarras. Vejam só. Depois de uma certa idade não dá pra tomar Chapinha como se fosse Château Margoux, e o cara não precisa ser nenhum Léo Ferré nem agradecer a Satã para constatar isso. Nem Buda, depois de sofrer o ataque do demônio e de suas hostes de tigres, leões, camelos e guerreiros monstruosos, seria besta de encarar uma ressaca de Chapinha no dia seguinte, quando – coincidentemente – atingiria o Nirvana debaixo da figueira sagrada, a árvore do conhecimento. Leiam Borges, é ele quem sugere: troquem a figueira pelas sombras noturnas das oliveiras e, depois do interstício da longa noite nightmare, teremos Jesus Cristo passando pelo mesmo perrengue ou entreato mágico – a batalha contra o demônio noturno pode durar poucas horas ou séculos, depende da resistência de quem o enfrenta.

Aposto que os três, Jesus, Buda e Bodhidharma e mais o Rick Vecchione que até então me passara – indesculpavelmente – despercebido, estavam ali naquela noite no Café Aurora, junto com o Edinho e o Ademir – que liberou minha entrada na base da camaradagem. Porque ninguém é de ferro. Um dia inteiro ouvindo a gritaria brega dos neo-evangélicos e ruminando o alface dos budistas, deve ser foda. Nem sendo filho de Deus e nem sob os auspícios e a proteção de 33 céus, nem assim dá pra aguentar tamanha encheção de saco. De modo que eu e o Edinho, Buda, Jesus Cristo e todos os bebuns do bar, cobiçávamos o escorpião tatuado na virilha da garçonete, enchíamos a cara e agradecíamos a luz que trouxe o Mario das trevas até aquele palco, ele mesmo, Mário Bortolotto, o homem do peito de aço, que urrava: Vê se não banca a louca/ não vai pensar em mim/ com outro pau na sua boca.

Não era o Nirvana no Bixiga, mas era o Saco de Ratos – o que, convenhamos, dava na mesma.

* Considerado uma das grandes revelações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário. É autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.

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