Artigo

Uma historinha de samba

Por Ateneia Feijó no Blog do Noblat (original aqui)
Até que tentei. Mas não resisti à mulher de verdade. Explico-me. Domingo, lia a coluna do Ancelmo Góis quando deparei com a nota sobre a musa inspiradora do samba "Ai, que saudades da Amélia", de Mário Lago e Ataulfo Alves. A nota dizia que a Amélia existiu mesmo. E que morreu com mais de 90 anos, em Realengo, Zona Oeste do Rio. Gente, eu a conheci!

As novas gerações talvez nunca tenham escutado este velho samba que gerou polêmica e ganhou fama. Quem sabe soando ainda impertinente em ouvidos feministas ou machistas, que como nos antigos tempos levam seus versos ao pé da letra; inflamando paixões e discussões de julgamento da pobre Amélia...

Nunca vi fazer tanta exigência
Nem fazer o que você me faz
Você não sabe o que é consciência
Nem vê que eu sou um pobre rapaz

Você só pensa em luxo e riqueza
Tudo o que você vê, você quer
Ai, meu Deus, que saudades da Amélia
Aquilo, sim, é que era mulher!

Às vezes, passava fome ao meu lado
E achava bonito não ter o que comer
E quando me via contrariado
Dizia: "Meu filho, o que se há de fazer!"

Amélia não tinha a menor vaidade!
Amélia é que era mulher de verdade!

Em 1976, eu e o fotógrafo Carlos Humberto TDC localizamos Amélia no subúrbio carioca do Encantado. Aos 65 anos, viúva do tipógrafo Pedro Prisco Ferreira, mãe de 13 filhos (seis ainda eram vivos), ela morava com o caçula, a nora e duas netas. E não se fez de rogada.

Com 38 quilos, pequenina e grisalha, Amélia Ferreira se deixou fotografar na janela de um casarão cor-de-rosa desbotado sem luxo e sem riqueza. Com o retrato do seu amado e abraçada às netas. Posou também com Mário Lago e Araci de Almeida. Tudo para sair na Manchete.
Narrou ter se casado aos 14 anos. O marido era "tão amoroso e bom de conversa" que ela nunca se arrependera do matrimônio precoce. Confidenciou ter sido getulista e que as mulheres daquele tempo reclamavam melhor as coisas. "Agora estão mais letradas, agitam, mas o mundo vai cada vez pior", ressaltara.


Relatou que ia ao cinema, se divertia e o marido achava ótimo. No carnaval ela dançava no rancho Oposição, sambava no baile do River e no bloco "Não posso me amofinar". Em resumo. Vivera 45 anos com o tipógrafo Pedro e não tinha dúvidas: ele é que era homem! Passar fome ao seu lado? Como assim? O quintal estava cheio de patos, galinhas, porcos, cabritos.
Por que se transformara na Amélia do samba?


Para ajudar no orçamento familiar, a Amélia Ferreira fazia faxina e lavava a roupa da casa de dona Eugênia, mãe da cantora Araci de Almeida. Então, Altamir, irmão de Araci, bom de samba e pandeiro, impressionava-se com a coragem e a alegria daquela mulher miudinha cheia de filhos, que trabalhava sem perder a esportiva. Um dia, pegou o pandeiro e começou a cantarolar: "Amélia não tem a menor vaidade / Amélia é que é mulher de verdade / Pega a roupa e lava à vontade."

Ela riu da brincadeira. Tempos depois, escutou no rádio o "Ai, que saudades da Amélia", o samba já de autoria de Mário Lago e Ataulfo Alves. A Araci levara a idéia para Mário, que a desenvolvera. O Ataulfo fizera a música. "Quem me contou isso foi a própria Araci", garantira-me a mulher de verdade.

Ateneia Feijó é jornalista


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