Opinião

Censura para alguns, vale-tudo para outros

Washington Novaes
Quando faltavam três dias para completar um mês desde que um juiz de Brasília impôs a inacreditável censura prévia a este jornal - impedindo-o de cumprir sua missão de levar informações que deveriam ser públicas à sociedade (que tem o direito de acesso a elas) -, o Judiciário envolveu-se em mais um desses episódios que o tornam parte decisiva da atual crise institucional do País. E o fez com uma sentença do Supremo Tribunal Federal (STF) - por maioria escassa - que retira mais um direito dos cidadãos, o do sigilo em suas contas bancárias, e na prática dá a autoridades livre acesso a elas, que lhes deveria ser vedado. E ainda com a diferença de entender que o único culpado é o dirigente da instituição bancária que violou o sigilo; um ministro (na época do incidente) e seu assessor de Comunicação, a quem as informações sigilosas foram levadas, de nada têm culpa. Com isso o ex-ministro não precisa ser processado e pode candidatar-se a altos cargos públicos, embora ainda responda a uma dezena de processos por improbidade administrativa.


Não é o primeiro imbróglio que leva o Judiciário à frente do palco onde já se encontram o Legislativo e o Executivo. O primeiro, com escândalo atrás de escândalo, tem 30 dos 81 senadores respondendo a processos por crimes de natureza pública, ao lado de 165 deputados federais processados pelas mesmas razões. O segundo, no jogo da manutenção do poder, alia-se a inimigos que denunciava ontem, fecha os olhos ao que for preciso. Mas tudo configura um quadro que leva a temer rupturas indesejáveis, dado o horror que vai tomando conta de boa parte da sociedade.

Censura à comunicação nos termos em que foi decretada por um juiz leva a memória de volta aos tempos mais duros do regime militar, em que até porteiros de Ministérios se davam ao desplante de, por telefone, ordenar a órgãos de comunicação que não divulgassem este ou aquele fato. Sem apelação. Ainda com muitos textos em seus arquivos, todos simplesmente vedados por inteiro com um enorme X atravessando as páginas, o autor destas linhas se lembra de um episódio muito demonstrativo da prepotência, na época em que dirigia a redação do Globo Repórter (da Rede Globo), na década de 70. Ali, os roteiros finais e os programas gravados tinham de ser vistos e aprovados por censores da Polícia Federal, que impunham cortes parciais ou totais, sem nem sequer justificar a decisão. Foi assim com programas sobre as invasões no Pontal do Paranapanema, sobre o desaparecimento de Sete Quedas, sobre riscos da energia nuclear, sobre poluição em Salvador e em rios que deságuam em sua baía, sobre a vida de um delinquente juvenil - Wilsinho Galiléia - morto aos 17 anos pela polícia (programa dirigido por João Batista Andrade).

Talvez o caso mais aberrante tenha sido o de um documentário adaptado da TV inglesa e ali já exibido, sobre pigmeus africanos. A censora que assistia à versão final determinou a este escriba que cortasse toda a sequência mais bonita e emocionante, que documentava com muita delicadeza o nascimento de um pigmeu, sua saída do ventre da mãe. E ante a pergunta sobre as razões desse corte, limitou-se a censora a responder: "Porque uma criança não pode ver isso, uma mulher nua dando à luz." Ante o argumento de que as crianças do Rio de Janeiro (onde estávamos) e de outros lugares viam todos os dias mulheres de biquíni e "fio dental" nas praias, praticamente nuas, insistiu: "Mas é imoral." Um terceiro argumento - "é inacreditável que a senhora, mulher, considere imoral o momento mais bonito da vida das mulheres" - de nada adiantou, a censora foi categórica: "Corta!" E cortada foi toda a sequência.
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