Crônica

Os muros do Colégio Santa Cruz

Marcelo Mirisola*
Semana retrasada os manos pichadores aqui de São Paulo foram convocados por um estudante de Belas Artes para deixar suas marcas no prédio da bela faculdade. Se a notícia parece datada, meu texto, e o que eu penso sobre o assunto, nada tem a ver com as calças. O mesmo vale para a entrevista que Malu Montoro, diretora do Colégio Santa Cruz, deu a respeito de uma festa junina patrocinada por uma cervejaria em seu arraial.

Não vou levar em conta o calendário da borracharia Brasil. O que pega aqui não são as análises de especialistas e os palpites de futriqueiros em geral. Esqueçam a Fashion Week, o próximo escândalo envolvendo políticos canalhas e as declarações do travesti que comeu Ronaldinho. Isso tudo reflete apenas o precipício que nos induz invariavelmente ao erro e ao final da picada. Daí que vou mirar em dois alvos. O meu interesse é mostrar que a suposta “civilização” (Colégio Santa Cruz) anda de mãos dadas com a suposta “barbárie”; qual seja, os manos pichadores da Faculdade de Belas Artes. Confesso que vibrei com a atitude dos pichadores. E fiquei chocado com as declarações de Malu Montoro, diretora do Colégio Santa Cruz.

Mas pensei o seguinte:

Os muros e a cidade inteira pichada me parecem incompletos e preguiçosos, e a estrutura dos pichadores (ou a tese: começo, meio e fim) carece visivelmente de mais trabalho – mas, sobretudo, carece de audácia. Ainda assim tenho de reconhecer: os manos sabem zoar. Aqui entre nós: hoje em dia – infelizmente – fazer sujeira é algo mais honesto e necessário do que fazer literatura, festinha junina, arte ou a viadagem que o valha.

Essa minha observação "estética" (é claro) só vale no caso de os pichadores anônimos terem optado deliberadamente pela sujeira e – evidentemente – pelo anonimato.

Se foi isso mesmo, eu tiro meu chapéu para eles. Só faço uma ressalva: em vez do muro da dona Alzira, pichem o carro, a casa de campo e a casa de praia, o condomínio, as vidas passadas, o presente e a vida futura e, sobretudo, os muros que Malu Montoro, diretora do Colégio Santa Cruz, ergueu entre ela e o resto da sociedade. A questão era uma cervejaria que teria patrocinado a festa junina do Colégio Santa Cruz. A entrevista que essa senhora concedeu a Mônica Bérgamo,no jornal Folha de S. Paulo do dia 21/6, é a coisa mais arrogante, asquerosa e nojenta que li nas últimas décadas.

Para mim, fica difícil, até entre aspas, reproduzir as palavras e o “pensamento” dessa senhora. Mas vamos lá. Perguntada sobre o que achava do episódio, ela diz que: “Há todo um trabalho extremamente positivo em torno disso. Obviamente, se houve algum tipo de falha, ela é muito pequena perante o significado de entrosamento, desenvolvimento e recuperação da cultura brasileira que existe numa festa desse tipo”.

Uma festa do tipo junina. Ah, sei. Ela fala em “significado de entrosamento”? O que seria isso? Imagino que no boleto bancário “eu recebo para transformar seu filho num playboy e você me paga muito caro por isso” esteja implícita a resposta. Outras 136 empresas também patrocinaram o “evento”, segundo dona Malu Montoro.

Digamos que dona Malu Montoro tivesse outra explicação. Vamos insistir. Que tipo de entrosamento? Então a educadora – como se fosse a representante de uma ONG do Jardim Pantanal – encerra a primeira parte do seu brilhante raciocínio, dizendo que a “comunidade” sabia do patrocínio da cervejaria. Se tem “comunidade” na jogada, a sacanagem se justifica. Assim é fácil,né? Imagino que a comunidade a que se referiu é a dos manos do Alphaville. Ou seria a comunidade dos manos de Higienópolis? Ou as minas da Daslu?
Na resposta seguinte chama um pai de aluno (esse trouxa deve gastar uns dois mil reais de mensalidade) que acusou a presença de uma cervejaria entre os 136 patrocinadores da festa junina , de “pentelho” .

Consta que dona Malu Montoro é uma educadora e que se preocupa com a “recuperação da cultura brasileira” e consta que em colégios como o Santa Cruz é que se formam as “elites” do nosso país. Se é isso mesmo, ou seja, se dona Malu Montoro queria “recuperar a cultura brasileira”, quero dizer que ela conseguiu! Curiosamente numa festa caipira. Todo o esplendor e podridão do Brasil. Num arraial patrocinado por 136 urubus. Tudo ali, resgatado e conservado na cabeça de laquê de dona Malu Montoro.

E a farinha, dona Malu? Quem é que patrocinou o pó para os meninos?

Não confio no Lula, e acho mesmo que ele é um “mafioso” das cavernas. Mas depois das declarações de dona Malu Montoro, fiquei convencido de que o presidente tem lá os seus motivos para festejar a ignorância e tripudiar “dazelite” que mandam e desmandam “nestepaís”. Quem é o civilizado? Que é o bárbaro?

Daí que eu acho que os Manos têm que ir além da Faculdade de Belas Artes, têm que pichar a boca da dona Malu Montoro e pichar os pais e os alunos do Colégio Santa Cruz, e todos os patrocinadores envolvidos no “evento”, e deviam aproveitar para pichar o Bradesco, o Unibanco e as agências de exibição (porque não são cinemas) dos banqueiros, pichem a bunda dos participantes do festival de Paraty, e os curadores e o público do Itaú Cultural (que estão lá para isso mesmo: de bundinha empinada, esperando levar tinta no rabo); pichem as madames amigas da Malu que freqüentam a Casa do Saber, as câmaras municipais e as assembléias legislativas, pichem o poder Judiciário e pichem o Palácio dos Bandeirantes, pichem o Exército, a Marinha e a Aeronáutica, os shoppings e os condomínios fechados, e não deixem de pichar as camionetes 4x4 estacionadas em filas duplas. Pichem a vitrine da livraria Cultura, pichem a Fnac e pichem as igrejas neo-pentecostais, pichem as sinagogas e as mesquitas; aliás, pichem todas as igrejas e supermercados. Pichem os “espaços” Credicard e Mastercard. Não se esqueçam de pichar os estádios de futebol, e os ginásios poliesportivos, pichem também a embaixada da China e a casa do Silvio Santos. Pichem as empresas de construção civil. Pichem o lugar-comum, e as antenas de televisão. Pichem o prédio da Editora Abril e as tatuagens dos DJs da MTV. Pichem a sujeira!

Uma dica. Toda semana os grandes jornais publicam um guia/roteiro do que está acontecendo na cidade. Cinema, teatro, bares e restaurantes. Pichem essa mauricice chamada Vida Cultural, e pichem a bunda das pessoas. Isso mesmo! Tem um monte de mauricinho por aí metido a artista, que ganha uma grana do governo para divertir os outros mauricinhos, eles estão tirando da cara de vocês, manos! Pichada neles! Pichem a Lei Rouanet e – se for possível – pichem a bunda do Rouanet (que se localiza na Academia Brasileira de Letras). Pichem o Teatro Oficina e não se esqueçam do Zé Celso, ele vai adorar! E pichem os Sesis e os Senacs da vida também. As casas de cultura e tudo o que carregar o nome de “espaço”, é tudo enganação! Pichem as Rosas e a Casa das Rosas.

Pichem os políticos, e pichem as escolas onde os filhos desses políticos estudam. Sabem quanto custa a mensalidade do colégio Santa Cruz? Quanto custa uma mensalidade no Equipe? Pra quê? Pra formar mauricinho lírico, cultural? Tinta neles! Pichem os clubes onde os mauricinhos se isolam do mundo, e pichem as hípicas e as masmorras sadomasoquistas que eles freqüentam. Pichem os spas, e as academias de yôga e de hidroginástica. Pichem as clínicas de cirurgias plásticas e de reconstituição hormonal, e pichem os poodles e os pet shops, sejam mais invasivos. Pichem o prédio da Bienal, pichem as caveirinhas da Fashion Week e as cafetinas que as exploram.

Na semana passada lançaram a biografia de Paulo Maluf. Onde estavam vocês? Pichem as colunas sociais, pichem o Café Suplicy e joguem tinta preta nos tapetes vermelhos, pichem os lugares onde uma empadinha custa mais do que um PF; pichem a Oscar Freire e a galeria Ouro Fino, pichem o Borba Gato e pichem o Cristo Redentor, pichem tudo que for bunda mole no Brasil, e não se esqueçam de pichar a pichação de vocês mesmos, o garrancho e a sujeira têm de prevalecer, pichem tudo o que for autoridade; vocês já picharam a gramática e a sintaxe, ora, pichem a lógica, a disciplina e a hierarquia, pichem as salas Vips e não se esqueçam de pichar os aeroportos. Por que só ponto de ônibus e por que somente os muros da casa da dona Alzira?

Sejam mais audaciosos, pichem o prédio do Lula em São Bernardo do Campo, e pichem Higienópolis inteira, pichem a USP e pichem a Daslu. Têm as agências de publicidade, as baias de telemarkenting, subam a serra e pichem todos os pedágios, e pichem o Hotel Toriba em Campos do Jordão, pichem a casa da Hebe Camargo no Morumbi ...

A lista é imensa, eu poderia sugerir o parque aquático da Xuxa (ou é do Gugu?) ou dizer pra vocês picharem a privada onde fazem suas merdas, tanta coisa, agora não lembro. De qualquer forma, parabéns pela pichação na Faculdade de Belas Artes. Aliás, esse endereço merecia ser pichado toda semana, faltou vocês picharem o reitor e as secretárias e o pessoal do almoxarifado, e os seguranças também. Da próxima vez – tenho certeza – vocês vão fazer o serviço completo. A parada é a seguinte: tem muita sujeira para ser emporcalhada. Agora que começaram enfiem até o talo. Não sejam covardes, deixem a dona Alzira em paz, e toda vez que forem pichar um muro, lembrem-se do laquê obsceno de dona Malu Montoro. Os muros do Colégio Santa Cruz não podem permanecer brancos e impunes.
*Marcelo Mirisola, 42, é paulistano, autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô, O azul do filho morto (os três pela Editora 34), Joana a contragosto (Record), entre outros.

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