Crônica

Experiência incomum

Nem sei como dizer. Muitos não vão acreditar. Outros vão duvidar de minha sanidade mental. Mesmo assim sei que é meu dever relatar a insólita experiência pela qual passei hoje à tarde. Então vamos lá. A história começa logo após o almoço, por volta de doze e quarenta e cinco. Não estranhem, almoço cedo, tenho o hábito de comer pouco pela manhã e por volta do meio dia estou esfaimado. Após um repasto à base de legumes cozidos e frango grelhado sentei-me para ler o jornal. O sono foi chegando e acabei adormecendo no sofá. Dormi quarenta e cinco minutos. Depois da sesta, tomei um café acabado de coar e rumei ao escritório para cuidar de meus afazeres na Internet. Foi o que fiz até faltarem quinze para as quatro, quando saí para levar meu cachorro passear, como é nosso costume. Como estou em período de convalescença de uma gripe arrasa quarteirão, dei apenas uma volta pelas proximidades e quando retornei imaginei que o relógio da sala estivesse marcando quatro e quinze. Errei. Marcava cinco e quinze. Imaginei que fosse um problema de pilha fraca, consultei o relógio de pulso, só não tinha feito isso antes porque para enxergar as horas preciso de óculos e quando saio com o cachorro os deixo em casa para não perdê-los. Em tempo, outrora perdi dois pares. Nada supera a experiência no sentido de evitar que cometamos erros. Isso pode até ser uma justificativa para os que defendem a reeleição, coisa que abomino. Estou fugindo do assunto, tergiversando. É difícil admitir o que aconteceu. Alguém surrupiou uma hora da minha vida. Uma simples hora, mas era minha essa hora e eu tinha o direito de vivê-la como bem me aprouvesse, sem que ninguém pudesse dizer um ai de meus excessos ou de minha intemperança. Fiquei perplexo e estupefato. Em partes iguais. Quem fez isso comigo? Com que direito e principalmente, o que mais eu gostaria de saber, como? Evidentemente não me imaginei comentando um evento tão insólito com alguém, exceto com o meu cachorro, que não deu muita importância. Cachorros são frívolos quanto a essas questões de tempo, melhor seria se eu tivesse um amigo inglês. Na verdade, até tenho, mas ele não estava em casa, saiu enquanto eu passeava com o cão. Resignei-me ante a evidência de um fato sem remédio, remediado portanto. Contristado e macambúzio, desta vez em partes ligeiramente diferentes, sessenta por cento contristado e o restante macambúzio, sentei-me na varanda a contemplar nuvens. Um pequeno vazio no cinza claro deixava entrever uma vastidão de cinza chumbo e um grande vazio neste mostrava dois buracos ovais pintados de azul da Prússia, que me fitavam como dois olhos ávidos por entrar em contato. Fiquei hipnotizado. É bom olhar nuvens, foram feitas para isso. Como as pessoas não lhes dão importância elas se resumem a chover de forma despeitada. De repente, sem que eu visse por onde chegou, do fundo do jardim emergiu um homenzinho azulado que parou em minha frente e resmungou a valer. Não entendi nada, apenas notei que se tratava de um elfo, criatura da floresta bastante encontradiça em plagas européias e que raramente dá as caras na Mata Atlântica por ser um dos petiscos preferidos do mico-leão-dourado. Até que era simpático, não fosse o nariz. Estava inchado, parecia que tinha levado uma batida. Sem saber o que dizer fiquei calado. É o melhor a fazer nessas ocasiões. Apenas notei que meu cão levantou uma orelha, prenúncio de que logo haveria um exame detalhado do pequeno ser mágico. Ele também notou e cuidou de afinar a freqüência das emissões até que passei a entender o que estava dizendo. Ele veio devolver a minha hora. Agradeci e pedi para que o fizesse durante a noite, assim eu teria uma hora a mais de sono. É bom para a gripe. Ele concordou e já se preparava para ir embora quando lhe ofereci alguma coisa para comer, bolachas, salsichas, um pouco de leite, goiabada, arenque. Ele aceitou uísque e torta de noz-moscada. Depois disse que não gostou de Ubatuba. Curioso, perguntei o porquê, não tenho conhecimento de micos-leões nas proximidades. Ele disse que o problema é de outra ordem. Passeando pela cidade ele notou uma praça cercada de tapumes. Dentro havia caminhos desenhados no chão. Feliz da vida começou a voar baixo seguindo a borda de um desses caminhos e deu com a cara em uma árvore. Ele então jurou nunca mais voltar. Esta é uma cidade maluca, colocam árvores no meio dos caminhos, ou melhor, colocam caminhos onde há árvores. Se fosse em Portugal ele entenderia, contudo é bom lembrar que o engenheiro luso autor de obra semelhante teve fim trágico. Foi decapitado a mando do rei em mil duzentos e oitenta e quatro. Antes de ir ele sugeriu placas para a futura praça. Cuidado com a árvore. Pise na grama.

Sidney Borges

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