Século XX

Em berço esplêndido

Sidney Borges
Seu Miguel foi torneiro mecânico a vida inteira. Começou cedo. Com 19 anos era aprendiz em uma fábrica de balanças no Canindé, bairro de São Paulo. O presidente do Brasil era Getúlio Vargas que logo virou ditador no "Estado Novo".

Seu Miguel era getulista e também nacionalista. Não gostava do patrão que considerava americanófilo. Agora ele vai ver, pensou seu Miguel, Getúlio vai encampar a fábrica e os salários vão melhorar. Os anos foram passando e Getúlio não só não encampou a fábrica como ficou amigo do patrão, capitalista explorador, aparecendo ao lado dele em jantares no Country Club. O salário não melhorou.

Com o fim da guerra Getúlio caiu, veio a democracia e com ela o "american way of life". Seu Miguel, recém casado e com um filho para nascer encheu-se de esperança. Nos Estados Unidos os operários vivem bem, têm carro e geladeira. Nós vamos viver como eles. Os anos foram passando e seu Miguel continuou andando de bonde, morando de aluguel e vendo o patrão nas colunas sociais do jornal de domingo.

Getúlio voltou à presidência e se matou, Café Filho assumiu até dar o lugar a Juscelino, que mudou a capital para Brasília e foi sucedido por Jânio Quadros, que prometeu varrer a bandalheira. Seu Miguel ganhou um torno moderno do patrão e um relógio japonês pelos vinte e cinco anos de casa. Continuou ganhando mal enquanto o patrão ampliava a fábrica para exportar balanças para a Europa.

Jango Goulart assumiu depois de viajar pela China e foi logo prometendo reformas. Reforma de base, reforma agrária, reformou tanto que os militares o reformaram, tomando finalmente o poder. Estavam ansiosos por isso desde 1922. Ansiosos não é bem o termo. Babando fica melhor.

Seu Miguel deu ouro para o bem do Brasil e continuou pegando o bonde para ir trabalhar, até não haver mais bonde. O jeito foi andar de ônibus. Em 1969 aconteceu a motocicleta Honda 65 e a liberdade. Seu Miguel em sua moto se sentiu total. Anos antes de um tal de Vital fazer sucesso nas paradas.

Veio o milagre brasileiro. O patrão comprou um jatinho e um helicóptero para ir pro Guarujá. Seu Miguel comprou um fusca pé-de-boi financiado pela Caixa Econômica e um apartamento em Cumbica, num conjunto habitacional premiado na Tchecoslováquia e na Alemanha Oriental.

Em 1966 seu Miguel finalmente se aposentou, deixando em seu lugar Miguelzinho, de 20 anos, técnico mecânico formado no Senai. O patrão vendeu metade da fábrica para uma empresa americana e mudou-se para Miami.

Seu Miguel reformou o apartamento e comprou um canário roller anelado para inciar uma criação. O tempo foi passando. A ditadura envelheceu, o povo começou a pedir eleições. Diretas já era a voz das ruas.

Com a chegada breve de Tancredo ao poder voltou a democracia.

Tancredo morreu, Sarney assumiu, a inflação cresceu e Miguelzinho ficou noivo.

Nova eleição. Lula prometeu "menas maracutaia". Collor ganhou. Miguelzinho casou-se e comprou um apartamento financiado pela Caixa Econômica. Foi morar em São Bernardo onde passou a freqüentar o sindicato. O patrão de vez em quando aparecia, sempre bronzeado e em forma. Quando nasceu o primeiro filho Miguelzinho foi eleito segundo secretário pela chapa "unidade já". Pediu licença na fábrica. Agora iria dedicar-se primordialmente à vida sindical. Nessa época filiou-se ao partido dos trabalhadores.

Collor saiu, entrou Itamar e FHC surgiu no horizonte. Na virada de poder Lula parecia a bola da vez, mas FHC levou e o Brasil do Plano Real tomou forma.

Miguelzinho cresceu no sindicato, passou a encabeçar negociações com os patrões. Mudou-se para São Paulo. Em tempo, os patrões dos tempos de Getúlio Vargas continuaram patrões e os empregados continuaram empregados. O país cresceu, a população cresceu, a economia cresceu. A desigualgade continuou igual.

Durante oito anos Lula prometeu mudanças e como é sabido, água mole em pedra dura, tanto bate até que fura. Lula tornou-se presidente, o Plano Real continuou vigorando e a economia andando firme em trilhos fincados por tucanos. Lula foi reeleito e promete eleger Dilma como sua sucessora. O modo de produção continua capitalista.

Miguelzinho permanece no sindicato, mora num triplex na Berrini e dirige um BMW. Tem um filho estudando nos Estados Unidos, atualmente morando na casa do ex-patrão. Por pouco tempo, apenas enquanto seu loft é decorado.

Seu Miguel morreu limpando gaiolas. Enfarte fulminante.

Serra é o candidato da vez. Promete mudanças. Dilma promete mudanças. Lula promete que voltará em 2014 ou em 2018. Para fazer mudanças. Enquanto isso o modo de produção continua capitalista, com os patrões ganhando muito e a massa ignara torcendo pelo scratch e vivendo de migalhas. Esse é o Brasil que tanto muda e quase não sai do lugar...

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