Crônica

Manual de Procedimentos ou ... Quando eu morrer, vou virar paisagem!

Marcelo Mungioli
"Era inevitável: todas as manhãs ele via a morte no espelho. Não porque a morte tenha sido sempre um tema constante, quase obsessivo, em sua obra amarga, descrente de Deus, do mundo e dos homens. É que via o rosto no espelho, os cabelos brancos, as manchas na pele e descobria: estava ficando velho. A vida estava no fim".
Luiz Fernando Emediato, texto de abertura da entrevista concedida por Drummond, poucos dias antes da morte do poeta, publicada no Caderno2, do jornal O Estado de S. Paulo em 15 de agosto de 1987
Já deixei por escrito que, após a minha morte, quero que meu corpo seja cremado e que as cinzas sejam atiradas, em partes iguais, em lugares determinados: o mirante da Vermelha do Norte e na subida, após a sede administrativa do Parque Estadual, próximo da entrada para a Picinguaba, onde se descortina uma vista eterna, atemporal, da praia da Fazenda. Quando assoprarem ou sacudirem as minhas cinzas, estas pousarão nas árvores, no mato, nas pedras e vão se incorporar ou se transformar em alimento para plantas ou bichos.
Desta forma, creio que um pouco do meu corpo físico (ou o que restou dele), da minha memória, se incorporará à paisagem, enquanto meu espírito já tiver ido para as terras de Aruanda.
Não gosto da idéia da morte, mesmo sabendo que ela faz parte da vida. Aceito como um fato natural, que prefiro transformar em uma festa de despedida.
Na década de 80, moço ainda, me lembro de ter ido a um velório diferente: sem velas ou luto. Com choro de verdade, uísque e muita vodka. Era uma despedida, sim. Mas daquelas despedidas de alguém que vai viajar, mas a quem a gente vai reencontrar, cedo ou tarde. E todos nós, vamos nos reencontrar, cedo ou tarde.
Passados quase trinta anos, olhando para trás, vejo que mais de metade dos que beberam e cantaram naquela despedida, já se despediram também. E a grande maioria deles, mesmo depois daquele exemplo fantástico, se foi sisudo, austero e medíocre. Todos com o mesmo ranço, com a mesma tristeza...
Porisso, enquanto não chegar a hora de reencontrar meus amigos, eu quero virar paisagem. Para que, cada vez que eles por ali passem, lembrem de algum momento, de alguma história.
Quero ser cremado e que minhas cinzas sejam sacudidas e sopradas ao vento, também porque, depois de morto, não quero ser estorvo.
Não quero que se preocupem com o enterro, o jazigo ou o aluguel do carneiro e, depois, suprema crueldade: com a exumação. Quero ser apenas paisagem, lembrança boa, coisa bonita.
E quero que bebam: que bebam muito, mesmo os evangélicos (esqueçamos as diferenças e desafiemos as proibições, só por esta vez). Não para ficar de "porre", mas por libação, por prazer, para comungar com a arte (que tal chamar o "Tá na Rua"?), com a boa música (Milagre dos Peixes, do Milton Nascimento) e com a poesia de Dummond, de Fernando Pessoa e de Manoel Bandeira. É só por um dia (toda a vida cabe apenas em um dia)!


Milagre dos Peixes

"Eu vejo esses peixes e vou de coração

Eu vejo essas matas e vou de coração à natureza
Telas falam colorido de crianças coloridas
De um gênio televisor


E no ardor de nossos novos santos
O sinal de velhos tempos
Morte, morte, morte ao amor
Eles não falam do mar e dos peixes


Nem deixam ver a moça, pura canção

Nem ver nascer a flor, nem ver nascer o sol

E eu apenas sou um a mais, um a mais

A falar dessa dor, a nossa dor
Desenhando nessas pedras
Tenho em mim todas as cores
Quando falo coisas reais


E no silêncio dessa natureza
Eu que amo meus amigos
Livre, quero poder dizer


Eu vejo esses peixes e dou de coração"

Para ouvir um trecho de Milagre dos Peixes, clique aqui

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