Opinião

Heranças incômodas

Contardo Calligaris
Às vezes, parece que me falta alguma coisa para entender o que acontece —isso, por eu ser estrangeiro (quem sabe falte-me um pedaço da história ou da experiência nacional).

Por exemplo, não consigo me resignar à virulência do debate público de hoje —menos ainda me resigno à impossibilidade de diálogo.

Fui militante em épocas de enfrentamento político violento —1968 na França e 1969 na Itália. De ambos os lados, havia uma grande clareza sobre quem era o inimigo, mas a oposição não impedia a circulação: vários empresários eram comunistas, favoráveis à socialização dos meios de produção ou à autogestão das fábricas, e, vice-versa, vários proletários achavam que só o liberalismo lhes daria a chance de crescer segundo suas ambições e seus méritos.

Eu era um estudante de classe média alta; isso nunca foi um problema para meus companheiros da célula de Viale Argonne. Ninguém desprezava ninguém por ser rico ou por ser pobre.

Claro, a mesma circulação é possível no Brasil, mas, na violência da "polarização", sinto (é isso: uma impressão) que se manifesta um ódio carnal, um ódio dos pobres no discurso dos ricos e um ódio dos ricos no discurso dos pobres.

Suspeito, em suma, que, no Brasil e talvez nas Américas, vingue um ódio mais pessoal e físico do que o ódio de classe da velha Europa.

A escravatura é sempre culpada pelas mazelas nacionais. Mas, de fato, no Brasil, durante séculos, a liberdade física individual não era garantida a todos: uma parte relevante da população (a "menos favorecida") não dispunha de seu próprio corpo. O Habeas Corpus entrou no código de procedimento criminal em 1832, mas não valia para os negros escravos nem para os índios. (cf. M. Ovinski de Camargo, "O Habeas Corpus no Brasil império", Sequência, v.25, n.49, 2004).

Em geral, tendo a acreditar que as heranças históricas sejam relevantes na formação do nosso caráter, mas eu desconhecia confirmações experimentais dessa ideia.

Uma leitora, Nadja Souza Pinto, me indicou uma pesquisa recente ("Nature", vol. 531, 24/3/2016) que mede a relação, em 23 países, entre a honestidade individual e a maior ou menor frequência da quebra das regras na sociedade (PVR, "Prevalence of Rule Violations").

A pesquisa documenta assim os efeitos da imoralidade na vida pública sobre o caráter dos cidadãos.

A honestidade intrínseca dos indivíduos da amostra foi medida com um teste em que eles jogam um dado e devem declarar o resultado –sendo que não há verificação e eles são tentados por recompensas maiores se o resultado for maior.

A PVR é calculada para cada país a partir de fraude política, evasão fiscal e corrupção (o Brasil não faz parte dos 23 países considerados). O resultado da pesquisa é que, nos países socialmente corruptos, a honestidade individual se perde. A corrupção pública não é só desastrosa economicamente, ela também corrói a capacidade de todos agirmos moralmente.

Com "Raízes do Brasil", de Sergio Buarque de Holanda, aprendemos que a confusão entre o público e o privado é, ao mesmo tempo, uma herança histórica e um traço de caráter.

Isso explica minha dificuldade em conversar com amigos sobre o famoso grampo da conversa entre Lula e a presidente Dilma. Não sei se a publicação do grampo foi legal ou não, mas entendo a urgência do juíz Moro, porque, aos meus ouvidos (e talvez aos dele), a gravidade do teor da conversa é extrema.

Meus interlocutores não acham nada demais: por que ela não ajudaria um mentor e amigo? Para mim, tem poucas coisas tão perigosas para uma democracia quanto a confusão de público e privado que está na ideia de nomear um amigo ministro para protegê-lo da justiça.

Outro exemplo, para evitar suposições partidárias. Não sei em que pé está a apuração da denúncia de Mirian Dutra contra Fernando Henrique Cardoso. O fato de o então presidente ter uma amante, um filho, pelo qual pagava pensão etc., tudo isso me é indiferente. Agora, Mirian Dutra declarou que, para facilitar o pagamento da dita pensão no exterior, o presidente pediu a um empresário amigo que ele a registrasse como dependente. Há interlocutores que me perguntariam: o que que tem?

Eu teria preferido que FHC mandasse agentes para Espanha, a cada mês, a bordo de um avião da FAB, só para efetuar o pagamento. Seria muito mais custoso para a República? Em dinheiro, sem dúvida. Mas há custos que não se medem em dinheiro. 

Original aqui

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