Coluna do Mirisola

Arrabalde, tá ligado?

Congresso em Foco publica peça inédita de Marcelo Mirisola

Marcelo Mirisola
Revirando meus arquivos, achei esta peça inédita, a escrevi em 2006/2007. Não sei se valeria a pena encená-la. Na época, mostrei pra minha amiga Fernanda D’Umbra e ela me disse que faltava ação, movimento. Penso que Fernanda está certa. Mas, a título de curiosidade, achei que valia a pena publicá-la no Congresso em Foco, pois foi daqui que saiu uma boa parte do Monólogo da Velha Apresentadora, que foi encenada três anos depois – tendo o saudoso Alberto Guzik como protagonista.

Primeiro Ato

Duas bundas empinadas para a platéia. Bermudões arriados, usam bonés com as abas viradas para trás. Claro, são dois manos.
Nota: A partir do Segundo Ato, os versos geniais da Bunda 2 (ou
Mc Asshole) serão acompanhados de coreografia. Isto é; toda vez que ele declamar seus versos os demais personagens irão acompanhá-lo. Inclusive a apresentadora de Tevê.

Bunda 1: Maior liga, mano. Neguinho tem mesmo que pôr “os” dedo nas “ferida”, e barbarizar. As madame vão ter que lavar as roupa suja, tá ligado? A perifa é o centro, mano! Viu os pleiba se fudendo? Na ZS quem passa recibo acorda com a boca cheia de formiga… (rap ao fundo)… agora os playba vão conhecer a verdadeira verdade.

Bunda 2: Tô ligado! Sou poeta, tento e invento um sentimento/ a minha existência é só o momento (ambos rebolam). rap: Uuhuuu!

Black out.
Luz incide sobre outras bundas

Duas bundas empinadas. Bunda 3 e Bunda 4. Um antropólogo e o outro uma espécie de ajudante-executivo (roupas devidamente arriadas- bundinhas empinadas). Ouve-se alguma música do Chico Buarque “político”.


Bunda 3: Instigante sua postura, Gui! Confira a agenda, por gentileza: quarta-feira gravação no Jornal da Gazeta, o tema é preconceito e a questão das cotas, confere?

Bunda 4: Preconceito e cotas, confere. E na sexta, o que vai rolar?

Bunda 3: Você é quem organiza essa maldita agenda. Pode?

Bunda 4: Aiiiiiii que estresse… pera aí, ah: sexta-feira tem o programa da Adriane Galisteu, acho essa perua cafonérrima.

Bunda 3: Você não está aqui para achar ou deixar de achar. Esqueceu? Temos que buscar uma sintonia, conciliar os pólos. Ir lá atrás, pesquisar a fundo Mário de Andrade… Ir ao âmago...

Bunda 4: Uiiiii, ao âmago! Lá atrás! Bem fundo! Arrasou!

Bunda 3: Depois da Adriane, vamos ao Jardim Paraisópolis… ou Fasano, Guii?

Bunda 4: Fasano, Mona! Outra vez!

Bunda 4 e Bunda 3: Ai, que pobreza. (ambos falam ao mesmo tempo, e rebolam os bundões… canção do Chico até a penumbra completa)

Black Out.
Agora a luz incide sobre as Bundas 1 e 2.


Bunda 2: Minha existência eu mesmo invento/ Sou um poeta do sentimento /Tento e invento/ o movimento.

Bunda 1: Da hora, mano. As grade nunca vão prendê nossos pensamento (incisivo). Foi o Mano Brown que disse essas palavra, lá na Sé. Depois os nóia quebraram tudo. Nóis tem que chegar pra definir, tá ligado?

Luz no palco todo.
Bundas 1 e 2, e Bundas 3 e 4 lado a lado (todas escancarando os respectivos cus para a platéia)

Bunda 4 (grita): Um Luxo! Mano Brown é um luxo!

Bunda 1: Ô mano, quem são esses treta?

Bunda 4: Aiii, gente. A gravação vai começar daqui a dois minutos. Vocês já passaram no camarim? Uma base! Não quero ver reflexo… Cadê o Pó de arrroz, geeeeente?

Bunda 4 passa pó de arroz na Bunda 3, que passa pó de arroz da Bunda 2. Bunda 2 passa o Pó de Arroz na Bunda 1.

Bunda 2: Tento e invento/ Sou movimento / Minha existência/ é o momento…

Bunda 3: Gui! Guiiiii! Por favor: Fala pro cavalheiro ao lado segurar a onda!

Bunda 4: O seu momento é daqui a dois minutos, gato. Passa mais Pó de Arroz, quem brilha é você não é o suor! E segura a onda, por favor! Um time! Dois minutinhos, mais um pouquinho e a gente entra e arrasa!

Bunda 2: Tento e invento/ o sentimento / sou poeta do movimento

Bunda 1: Firmeza, truta. Agora é nóis! A faculdade da vida é mil grau… os filhodamamãe num sabe o que é um Mc … num sabe a diferença de um Thaíde prum Mano Brown… nóis é a voz dos preto e dos pobre. Hip Hop é sabedoria… cultura das rua, das esquina, das puta, dos gueto. Hip Hop não é só um estilo de música, tá ligado?

Bunda 2: Tento e invento/ o meu momento… minha existência/ meu sentimento

Bunda 3: Tô ligado sim, criatura (irritado). Vocês são o máximo!

Bunda 1: Nóis vivemo os conflito, tá ligado? Nossa poesia fala da violência vivida pelas classes menos favorecida da sociedade. Tem mais pó de arroz aí, truta?

Bunda 4: Pó de arroz… saiiindo!

Bunda 2 passa o pó de arroz na Bunda 1, que logo emenda seus versos:

Bunda 2: O nosso momento / é violento/ O sentimento eu mesmo invento.

Bunda 4: Vamos repassar o texto, Mona? Quero tudo bem decoradinho, vou lhe tomar, hein! Vamos lá, vamos lá. O que o estilo Hip Hop mostra ao Brasil?

Bunda 3 (obediente como se tivesse decorado uma tabuada): No Brasil, o Hip Hop mostra a realidade dos jovens negros e pobres de cidades grandes, como Rio de Janeiro e São Paulo, cantada (rap), dançada (street dance) e pintada (grafite). Numa forma de discussão e protesto que envolve o preconceito racial e a miséria dessa população discriminada, ignorada e excluída. O Hip-Hop é o grito que pede para ser ouvido…

Bunda 2 (interrompe): Tento e invento/ o movimento / a minha existência Uhhuuu!

Bunda 3: O grito (enfatiza a palavra “grito”) que pede para ser ouvido (repete contrariado): Que pede para ser ouvido … a fim de modificar a vida dos jovens. Que tal, Guiii? Por favor, passa um pouquinho mais de Pó-de-Arroz…. Vai dar reflexo!

Bunda 1: Hoje em dia os rappers de verdade… tipo nóis mesmo…

Bunda 2: Nóis mesmo, firmeza! A minha existência / eu mesmo invento/ O sentimento UhuuuUhhuu!

Bunda 4: Geeente! A gravação vai atrasar! Assaltaram a empregada da Hebe!

Black Out

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