Colunistas

Corações solitários

De como transformar verdades em mentiras descaradas, fora da ficção

Márcia Denser
Definitivamente não sou uma pessoa gregária.
 
E disso posso dar alguns exemplos, alguns bem bizarros. Nos anos 80, quando decidi ficar sócia dum clube, escolhi o Clube Inglês (ainda existe?) ou São Paulo Atletic Club (uma pérola incrustada – dotada de quatro maitres absolutamente impecáveis – na Visconde de Ouro Preto, imediações da Augusta com a 4ª. Delegacia), precisamente PARA NÃO TER QUE ME SOCIALIZAR COM NINGUÉM.
 
Posto que frequentado por ingleses, norte-americanos, australianos, finlandeses e afins, eu não teria que me entender com o entorno indecifrável, tampouco me emputecer, uma vez que bobagens ditas em outras línguas (tipo novela das oito ou muvucas da revista Contigo ou gossips políticos estúpidos, tudo perfeitamente embalado pelo tesouro nacional de clichês, lugares-comuns e frases feitas), naquele matraqueante coloquial gênero clube-soda, seriam inocentemente ignoradas (e ainda que as entendesse duma forma longínqua e/ou intermitente, podia tranquilamente me fazer de surda numa boa, tipo “brasileira loira-burra” ).
 
O objetivo era emparedar-me no interior dessa barreira de línguas estranhas, erguendo uma espécie de MURO entre mim e o resto da humanidade. Podia bronzear-me, beber e escrever, perfeitamente feliz e alheia, como se estivesse numa ilha deserta. Ou os demais fossem invisíveis. Ou ambos.
 
Suprema ironia: tenho contos traduzidos em dez línguas.
 
Amores: tive muitos, dezenas, centenas, sempre motivada pela paixão (leia-se desejo sexual) que, diga-se, nunca duravam muito, sei lá, meses ou semanas ou DIAS, para ser bem honesta e tudo mais:o fato é que eu esquecia qualquer sujeito muito rápido! Ou virava meu amigo ou eu simplesmente sumia com ele. Como o bicho da maçã, este último não me servia para nada. Por mais apaixonada que estivesse. Afinal, quem se importava? Em dois ou três dias, ele estaria esquecido de qualquer forma. O fato de “esquecer amores” muito rapidamente eu atribuía à minha personalidade – um mix de intelectualismo, superficialidade e frieza naturais.
 
O fato é que havia uma dissonância absurda entre o que eu era em essência (uma escritora por vocação e intelectual como consequência, que sabia no que estava se metendo, isto é, um universo eminentemente masculino, razão pela qual, apesar de possuir objetivos implacáveis de carreira, ter como princípio não fazer nenhuma concessão para atingi-los, salvo mérito, esforço e talento próprios, isto é, com minhas armas e apenas elas) e o que aparentava ser: uma mulher bonita, talvez excessivamente. O que era uma merda.
 
Daí o fato de Diana Caçadora cair-me como uma luva – na versão “sacerdotisa biscate” – com um estilo e um modus operandi definitivamente masculino. Sem contar uma certa irreverência provocadora, irresistível à mulher que a tem. E eu tinha. Definitivamente, era uma merda.
 
Também não estou me queixando de barriga cheia, só constatando como as coisas são. Digo, foram. Com a idade, tanto a beleza como o desejo vão ficando para trás: fosse ligada no amor, estaria ferrada. Outra bizarria: fosse maluca, não haveria psiquiatra para mim. Não após a leitura duns três mil livros, a vivência duns trezentos namorados e uma longa carreira literária das mais acidentadas, elementos absolutamente sem sentido, sobretudo no caso de psicólogos formados pelo período da tarde da Unip. Ferradíssima.
 
Bizarria derradeira: em viagens aéreas, escolho sempre os últimos lugares, na cauda, assento do corredor. No caso de precisar sair correndo em caso de malcriação (minha), insolência (idem), provocação (ibidem) ou os três, CASO os outros dois assentos já estejam ocupados, isto é, algo praticamente inevitável em 70% dos casos.
 
Quanto à primeira palavra do título: se existe uma coisa que eu não tenho é coração, no sentido babaca do termo (escrevi isto num conto, apropriadamente chamado Tigresa: se o “leão não tem pena da presa”, Diana, caçadora feroz, também não tinha).
 
Então qual o motivo da escolha do tema Corações Solitários? Salvo caso duma dupla homenagem aos Beatles: lembram de Sargents Paper Lonely Hart Club Band? – aquele disco abominável dos chatos de Liverpool? E Nathaniel West (autor do famoso Lonely Harts), escritor que acho um porre? E aqui, precisa ler o livro pra entender o trocadilho: escrito durante a “lei seca” nos EUA, seus personagens só bebem, repito, vivem bebendo o tempo todo, a ponto do leitor só prestar atenção NISSO, tornando-lhe linguagem e plot, completamente inúteis, tipo “ruídos na mensagem”. Algo que, aposto, nem o próprio West percebia, ocupado demais com o próximo copo.
 
Como viram, absolutamente não é este o caso.
 
Então o que temos aqui? Um texto que nega seu título? O que, por si mesmo, já seria um recurso, uma pirueta literária (e na arte do “contorcionismo verbal” nós, escritores, somos mestres)? Não exatamente.
 
Num golpe de prestidigitação textual, concluir que amor & solidão nada têm a ver entre si? Precisamente quando a verdade se dá na direção oposta, porquanto é o sistema de vínculos afetivos e reconhecimento pelo Outro que possibilitam nossa sanidade mental e desenvolvimento humanos? Não, naturalmente.
 
Apenas comprovar – mais uma vez e inutilmente – que, para quem sabe usá-la (o que também implica em distorcê-la), a palavra se presta a tudo. Literalmente.
 
Como isto ocorre nessa crônica? Bom, meio intuitiva, meio de-li-be-ra-da-men-te:
1) Omiti conexões entre “amor e solidão”, discorrendo separadamente sobre ambos;
2) Degradei o “amor”, rebaixando-o a “desejo sexual”;
3) Operando com o ritmo, associei “amor” à pressa, frieza e superficialidade;
4) Exaltei a “solidão”, falando dela a maior parte do tempo: dei-lhe mais espaço ergo mais valor que ao “amor”;
5) E o arremate bem filha-da-puta: o “amor” como coisa a ser “esquecida”,”deixada de lado”, “de somenos”. E bicho da maçã – “que não serve para nada”.
 
Taí, pessoal, como se dá o “contorcionismo verbal, arte tão sub-reptícia quanto marcial da qual possuo várias medalhas olímpicas e é preciso chegar lá, tornar-se um veterano no manejo de todo o estoque de truques sujos para entrar em campo e dar meia-volta na verdade, baixar-lhe o moral e à categoria de meia-verdade, fazê-la recuar pouco a pouco, encurralando a omissão contra as cordas, até que, na condição de mentira, beije a lona, glory halleluiah!” (in Caim, pg.22).

E tem gente que ainda fala em “processo criativo”, que gracinha…

Publicado originalmente no "congressoemfoco"

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