Deu em O Globo

O donatário

Miriam Leitão (original aqui)
O presidente Lula se despedindo da Presidência, no programa eleitoral de Dilma Rousseff, com a música "entrego em suas mãos o meu povo" me lembrou o pior Brasil. O Brasil dos donatários, das capitanias hereditárias.

Como se não fosse suficiente, ainda há o discurso que infantiliza o povo brasileiro com essa história de pai e mãe do povo.

Desde "Coronelismo, enxada e voto", de Victor Nunes Leal, o Brasil conhece bem esse seu pior lado. O do patrimonialismo brasileiro, do qual nasceram outros defeitos: o populismo, o paternalismo, o clientelismo.

Com a manipulação das massas, os donatários do Brasil mantêm o poder e o entregam aos seus herdeiros. Além do "deixo em suas mãos", há ainda a ameaça continuísta implícita: "Mas só deixo porque sei que vais continuar o que eu fiz." Como se Lula pudesse decidir não passar a Presidência à pessoa que for eleita este ano.

Ninguém duvida que apelos emocionais funcionam em campanha eleitoral. Mas não garantem eleição.

Difícil esquecer até hoje o contagiante "Lula lá, nasce uma estrela, Lula lá". E ele perdeu aquela eleição. São muitas as razões do voto e a história eleitoral brasileira é curta demais para que sejam traçadas leis gerais. Mas espera-se que ela não se explique pelo retrocesso, por essa visita ao passado.

A economia é decisiva na maioria das eleições, mas nem sempre. A economia americana estava num dos seus melhores momentos ao final do governo Bill Clinton e mesmo assim Al Gore perdeu. É bem verdade que Al Gore quis distância de Clinton por causa do escândalo Monica Levinsky.

Se por acaso o então presidente democrata fizesse uma campanha paternalista, cantando que entregava o povo americano nas mãos de Gore — como se fosse sua propriedade — certamente causaria rejeição ainda maior. Lá, eles não acham que eleitores passam de mão em mão como uma massa sem vontade própria.

Nem mesmo ocorreria a um presidente decidir pelo partido quem deve concorrer à sua sucessão, porque existe o saudável ritual das primárias em que os candidatos a candidatos enfrentam o desafio de convencer seus próprios militantes.

Aqui, nem governo nem oposição escolhem postulantes de forma transparente.

O Brasil está crescendo forte, a inflação está em queda — foi zero em julho — o crédito se expandindo, o consumo aumentando, o desemprego caindo. Alguns números são mais elevados por causa da base de comparação, mas há crescimento de fato.

A crise de 2008/2009 derrubou a economia e, da perspectiva da campanha governista no Brasil, a recuperação está ocorrendo na hora exata para ajudar o governo na campanha. Todos esses fatores são mais poderosos na definição do voto do que apelos populistas. É a sensação de conforto econômico que fortalece a campanha da continuidade.

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