Coluna do Mirisola

Pega! Pega o escritor!

Marcelo Mirisola*

Participei, junto com o Lourenço Mutarelli, de uma Tarrafa Literária. Lá em Santos. Foi o Zé Luis Tahan quem me tarrafeou, ou melhor, me convidou para o encontro. Agora, não sei se começo esta crônica falando da época em que conheci o Zé, quando ele trabalhava na extinta livraria Iporanga e me apresentou a Elias Canetti, ou se falo do debate mesmo e de quanto o Mutarelli me surpreendeu. Para ser sincero, acho que não tenho distanciamento suficiente – agora, não – para falar de uma coisa nem da outra. Quando se trata de memória, 20 anos podem ser tão longe quanto a imagem distorcida que tínhamos de alguém que há muito podia estar bem mais próximo da gente – coisa simples e complicada ao mesmo tempo.

Trata-se de uma peça ou de uma regrinha de três que, às vezes, a vida nos prega como se viver e lembrar fossem coisas paralelas, às vezes sobrepostas e na maior parte do tempo afins, como se uma coisa fosse consequência da outra, e todos sabemos que – apesar daquilo que vivemos e das lembranças que salpicam em nossa memória – não é bem assim que o bagulho funciona: atravessar ruas e amarrar sapatos podem ser atividades muito mais comprometedoras do que aquilo que imaginamos. Bukowski tem um belo poema sobre o assunto. Vejam só, além de viver e lembrar, ainda temos a capacidade de conjeturar, distorcer, viajar na maionese e nos iludir achando que pagamos meia entrada quando, na verdade, pagamos 12 por cento ao mês nos cinemas dos irmãos mauricinhos líricos. Quantas opções, né?

Sobretudo se você entornou uns gorós nos dias anteriores e não faz muita questão de se desapegar dos seus preciosos preconceitos, bem como não está nem aí para a “ciência” do tiozinho de Viena e sabe que não é exatamente a falta de tesão que você devia sentir por sua mãe que vai explicar a insensatez que é sobreviver a tudo isso e, como se não bastasse, você ainda diz bom dia ao porteiro do seu prédio e – se tiver uma mulher – vai ser obrigado a agüentá-la acusando-o de ser um filho da puta, egoísta, cachaceiro, promíscuo, irresponsável, etc etc. Melhor, portanto, deixar pra lá, e mandar um abraço pro Zé Luis e outro pro Mutarelli.

O engraçado é que minha memória está tinindo. E, depois de tantas idas e vindas, o Zé, no meio do debate, assim de supetão, acabou por me lembrar de uma confusão cujos desdobramentos hoje se misturam naquilo que eu vagamente chamo de lembranças, folha corrida, ressaca, tempos idos. Caramba! Como é que o Zé foi desencavar essa história...

Não foi no tempo do Rei. Mas foi no século passado, quando eu morava em Florianópolis. A TV local me convidou para uma entrevista. Quem conhece a repetidora da Globo naquela cidade, sabe onde é o Morro da Cruz. Um lugar alto, muito alto. E longe. O assunto era “O Herói Devolvido”, meu segundo livro de contos.

O cara que ia me entrevistar não havia lido nem um conto sequer. Não leu nem a orelha. Cheguei ao estúdio e ele, malandramente, me disse que tinha “jogo de cintura” para fazer a entrevista. Estava tudo sob controle. Pediu para eu ficar “calmo”.

Se fosse dois anos depois, eu diria a ele que remoí e ruminei O Azul do Filho Morto, meu primeiro romance, ao longo de três décadas. Que meus livros, em média, demoram 60 meses para serem escritos, essas coisas. Mas eu havia entrado numa espécie de estado de pré-catalepsia. Não consegui reagir. E o sujeito insistia: que era pre’u relaxar. Me garantiu que ele e seu “jogo de cintura” encerrariam a questão em “dez minutinhos”. Então tá.

Fiz uns cálculos. Uma orelha demora dois minutos para ser lida. O fdp não havia lido nada, nem se deu o trabalho de ler a orelha!, e o pior, não tinha nem um Herói Devolvido para remédio no estúdio.

Do estado de choque, passei ao estado de guerra. Me recusei a dar a entrevista. Sem o livro, não.

Todavia, como sou um cara gentil, e como ainda restavam uns 30 minutos antes de a entrevista começar, me ofereci a descer o morro e comprar o livro no centro da cidade. Exigi a grana para o táxi e para comprar um exemplar do Herói. O malandro ofereceu cem reais do próprio bolso, e eu não aceitei. Não podíamos arriscar: o fiz entender que o livro e o táxi ida e volta, e mais o horário do estúdio previamente agendado, pediam ao menos 200 reais. Melhor sobrar do que faltar. Daí que ele, cheio de jogo de cintura, foi obrigado a fazer uma vaquinha com o produtor e os técnicos da emissora, e teve que aceitar meus termos. Ou era duzentão ou não teria entrevista.

O motorista do táxi nem precisou descer o morro. Demos umas voltinhas pelos arredores, papeamos um pouco sobre o Guga, que, se não me falha a memória, havia ganhado Roland Garros pela primeira vez, e, quando o taxímetro marcou dez reais, eu já estava de volta ao estúdio. Não entrei.

Se eu fumasse, teria acendido três cigarros e teria dado tempo de apreciar a bela vista lá do alto do Morro da Cruz. Depois de uns 20 minutos, finalmente dei as caras no estúdio com o livro que havia trazido de casa, devida e antecipadamente atucanado no bolso do meu casaco de general.

E lá do outro lado, o entrevistador: com a revista que iria usar para fazer a cola das perguntas.

Isso mesmo. As mesmas perguntas que eu havia respondido na Playboy. Vou repetir: o cara colou as perguntas do Ciro Pessoa (uma das melhores entrevistas que dei na vida). Abração, Ciro.

A trambicagem, portanto, estava armada.

Como eu disse há pouco, além de ser um cara muito gentil, também sou generoso. Ofereci duas opções ao entrevistador. Isso no ar. A primeira opção consistia em lhe responder a mesma coisa que respondi ao Ciro “nessa revista aí que está debaixo da sua mesa”. A outra opção era ele me perguntar algo sobre o livro que não havia lido.

Então, cheio de “jogo de cintura”, começou a falar que o “bitinique John Fante inspirou as maluquices dos hippies...”.

A coisa não ia nada bem. Quando ele disse que eu também era “um maldito”... dei a entrevista por encerrada. Me levantei, e fui embora – deixei o cara suspenso, literalmente no ar.

Até aquele momento, o babaca ainda não havia se dado conta de que os duzentos reais e mais “troco” estavam no bolso do meu casaco de general – aliás, esse casaco é (até hoje) uma singela homenagem ao "Vapor Barato" do Macalé e do Wally Salomão, sou o maior fã dessa música interpretada pela Gal Costa. Somente pela Gal. O Rappa estragou a música. É o caso, creio, de se pensar em isolamento perpétuo ou pena de morte quando uns manés cometem atrocidades desse naipe. Cadê os legisladores?

Já no portão de saída, ouvi uns gritinhos hediondos vindos de dentro do estúdio: “Pega! Pega o escritor!”

Desci o morro da Cruz num pinote que deixaria Usain Bolt pálido de timidez. Se John Fante não tinha nada a ver com os hippies, eu também nada devia aos malditos, nem ao entrevistador. Muito pelo contrário. Aqueles cento e noventa reais foram uma mixaria de “cachê”. O mais ridículo de toda minha carreira de “escritor maldito”. Foi um puta sufoco, mas eu me diverti um bocado, eram outros tempos.

Curioso, essa história me lembrou de outra, também muito canalha. Trata-se de uma proposta indecente que me fizeram para cobrir uma “corrida de aventuras”. Fica para a próxima semana. Axé para todos.

*Considerado uma das grandes relevações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário. É autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.


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