Crônica

Sua alminha já tem dono

Marcelo Mirisola*
A primeira vitória do diabo é fazer você acreditar que Ele não existe. O descrédito é o primeiro passo para a danação eterna. Entretanto, se você está convencido de que ele existe, pode – neste momento – estar servindo aos interesses dele. E agora?
Se você relaxar, corre o risco de ser cooptado pela preguiça. Isto é, você vai pensar nas coxas da cunhadinha (ou no Sidney Magal: depende do gosto do freguês, que é o gosto do diabo) e incorrerá em tentação.
Aliás, a tentação é a arma mais eficiente do demônio. Ele atua nas entrelinhas. A possessão é apenas um detalhe. Ou algo ultrapassado que necessita de uma tela grande e de efeitos especiais. Um truque que os demônios do século passado – antes de o Spielberg nascer – usavam para provar que existiam de fato. Quem é que, hoje em dia, se espanta com abortos, urros, silvos e corujas no cemitério? Quem é que se espanta com a Hebe Camargo de lingerie?
Acho que só eu mesmo. A pasmaceira e a falta de reação são obra do Capeta. E o inferno – repito, e reitero – continua sendo a Hebe Camargo de lingerie.
Digamos que Satanás se adaptou tecnicamente aos novos tempos. Prescindiu da erudição. Antes, o demônio falava várias línguas, cantava trechos de ópera e deturpava o antigo (e o novo) testamento em latim e sânscrito.
Vejam o que diz o padre Francesco Bamonte: “Uma vez, reagindo às palavras do Rituale Romanum ‘inimigo da fé, adversário do gênero humano, portador da morte’, o demônio expressou toda a sua irresistível aspiração ao ‘mal pelo mal’ com estas palavras: O dia em que fomos afastados Dele, nós lhe dissemos: O poder do pecado será o nosso altar, sobre ele sacrificaremos as almas dos teus filhos, sobre aquele altar faremos correr o sangue dos teus filhos malditos. Existe um deus para quem odeia, e este deus é meu deus”. Sentiram a retórica?
Outro exemplo. No momento em que o Rituale Romanum previa a interrogação do demônio à pergunta sobre qual era seu nome, o até então indigitado afirmou chamar-se Sahaar e provir do deserto. O exorcista o mandou de volta para o deserto. Ao que o demônio retrucou prontamente: “Eu carrego o deserto”. Além da retórica, sentiram a responsabilidade e a contundência poética dessa resposta “Eu carrego o deserto”?
Há bem pouco tempo, Ele era até capaz de usar chifres, ter uma banda de rock e vomitar fogo para impressionar os incautos. O tipo da coisa que – convenhamos – qualquer modernete da rua Augusta é capaz de fazer com mais eficiência e cara de pau.
Não adianta nada o exorcista invocar a singela oração de São Miguel Arcanjo. O nome do demônio é legião. São exércitos. De sertanejos, de Ivetes Sangalos para jogar as mãozinhas para o alto e rebater água benta com Axé e Faustão em domingos enfadonhos e eternos. Se antes Ele carregava o deserto, hoje carrega o equipamento de som da banda Calypso.
Satanás, diferentemente de Deus, se adapta a qualquer coisa. Ontem era Baudelaire, Nietsche e Celine se esgueirando de Castelo em Castelo. Hoje é bundão. Se bandeou pro lado de Bruno & Marrone, Chimbinha e cia ltda. Eu o repudio, em nome da sintaxe! Aliás, quem é que me reflete no espelho? Tá difícil. Tá vazio. Satanás se dispõe no crediário. Não dá para relaxar.
Vejam só como Satanás anda meia-boca. Há questão de dois ou três anos, a ex-apresentadora de televisão Soninha (hoje colunista de jornal e candidata a prefeita da cidade de São Paulo) dizia numa entrevista que era maconheira, sim, mas pagava suas contas em dia.
Cazzo! Que conversa é essa? “Me drogo, mas pago minhas contas em dia”? Prefiro o mal pela raiz, ou o “estupra mas não mata” do Maluf. Só posso concluir que as almas foram esquartejadas, e ninguém mais encara o fundo do poço. Nem o diabo.
Por outro lado, se você não relaxar, vai ser pior. Pode cair numa arapuca armada por uma dessas igrejas neo-pentecostais da vida, e perder sua mulher para o pastor Brecão. Já pensou? O pastor Brecão faturando sua mulher em nome de Jesus?
Tá complicado. E eu acho, sinceramente, que o diabo está tripudiando da gente. E Jesus – como sempre – encontra-se em péssima companhia: “amém, irmão”?
Combater o Capeta? Nem pensar. A concorrência dos bispos-meganhas é feroz. Tem muito dinheiro na jogada. Você vai ser processado e ridicularizado, e nem os motoristas de táxi o levarão a sério. Comungar com as ignomínias Dele? Tampouco.
Daí que eu tenho uma sugestão. Seguinte: reza o Pai Nosso, e tenta não associar a imagem de Bento XVI à parada gay. Eu sei que é quase impossível, mas é uma espécie de trégua. E pode servir para desviar a atenção deles. Sim, deles. Porque Deus e o Zé do Caixão também estão no páreo. Não se iluda – sua alminha, além de uma trilha sonora abominável, já tem dono e não vale grande coisa.
*Marcelo Mirisola, 42, é paulistano, autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô, O azul do filho morto (os três pela Editora 34), Joana a contragosto (Record), entre outros.

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