Lembranças

Novembro, mês do AI-5

O passar do tempo faz com que os episódios vividos sejam apreciados com outra perspectiva, mais próxima da análise reflexiva, mais distante das paixões momentâneas. No final da década de 1960, depois da decretado o AI-5, em novembro de 1968, o panorama político mudou de quase festivo para espantoso, e depois para funesto, com mortes desnecessárias. Estou falando do ponto de vista de estudante universitário recém-saído do colegial, vivenciando uma ebulição pessoal sem precedentes. Anos depois conversando com um colega jornalista falei dessa sensação e ele, na época que eu situei acima, diretor de um dos maiores jornais do país, disse para minha surpresa que teve sentimento parecido. Havia um turbilhão de informações e acontecimentos emergindo de todos os quadrantes e atingindo a todos sem distinção de classe, cor ou credo. Na verdade nem todos se sentiram incomodados, a maioria silenciosa estava enchendo a burra com o dinheiro emprestado por Delfim Neto, arquiteto do “milagre brasileiro”.
No dia em que Carlos Lamarca abateu um segurança na Rua Piratininga, em São Paulo, em ação de expropriação, isto é, em assalto a banco, eu estava estudando na casa de um amigo. Logo chegou um colega da Economia cantando o feito. Estava entusiasmado, era simpatizante da luta armada. Falou da precisão do tiro que matou o guarda, tiro de pistola, tiro difícil, disparado do outro lado da rua com precisão cirúrgica, bem na fronte. Deve ser levado em conta que a Rua Piratininga é mais larga do que o normal das ruas de São Paulo. Sobre o guarda pouco foi dito, era um pobre diabo que tomava trem e dois ônibus para trabalhar. Deixou mulher e dois filhos. O colega da economia depois de estudar no exterior chegou ao poder, foi secretário de estado duas vezes, não sei o que ele pensa hoje da luta armada. Naquele tempo eu preferia calar, sempre fui contra a violência, principalmente contra a violência burra. Se você não pode vencer uma luta, então não lute, dizia o mestre Shao-Lin ao gafanhoto. Espere o momento certo e então corte a garganta do oponente.
Na sala em que estávamos estudando um homem lia jornal e prestava atenção ao que era dito, sem interferir. Era tio do colega anfitrião, ex-professor de História da Academia Militar das Agulhas Negras. Coronel recém-reformado do Exército estava ultimando os preparativos para se mudar para o Canadá. Quando eu me preparava para ir embora ele fez questão de me acompanhar até a porta e disse ter sido professor de Lamarca. Disse também que na turma do “traidor” (palavra dele) havia pelo menos vinte que atiravam melhor e cento e cinqüenta equivalentes. Eles haveriam de se encontrar um dia. Eu continuei calado, naquele tempo o trânsito era tranqüilo em São Paulo, dirigi para casa pensando na família do guarda morto. Para quê? Para nada. Aquela guerra jamais seria vencida.


Sidney Borges

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