ADPC

Carta aberta dos caiçaras de Ubatuba

Nós, caiçaras de Ubatuba, que um dia fomos donos das áreas mais belas do litoral, vimos trazer ao vosso conhecimento o nosso drama:
No Brasil, a década de 70 foi marcada por uma série de tristes fatos, onde destaca-se o absurdo acirramento da ditadura militar que violou os direitos humanos, rasgou a lei magna, exilou, torturou e assassinou quem ousasse elevar a voz contra os abusos.
Grandes obras foram planejadas pelos burocratas de Brasília para “desenvolver” o país. Como é de praxe, as decisões impostas geraram muito desperdício - bilhões de dólares foram mal gastos na Transamazônica (hoje a floresta retomou grandes trechos daquela mal construída rodovia), na Usina Nuclear de Angra dos Reis, na ferrovia do aço, etc.
Naqueles anos, no litoral norte de S.Paulo, foi construída a Rodovia BR-101, que provocou grandes mudanças econômicas, sociais e culturais nessa região que levaram à destruição da sociedade caiçara.
Procurando contextualizar os acontecimentos locais dentro do panorama histórico da época, vamos apurar que coincide com a época do governo militar, onde os desmandos autoritários deram guarida às ações de violência. É necessário lembrar que naqueles tristes anos, a justiça teve sua balança adulterada e o livro em suas mãos - que imaginamos ser a Lei Magna - foi conspurcado pelo arbítrio da ditadura.
A versão dos bem–vestidos e bem–relacionados teve e ainda tem mais influência sobre as autoridades estaduais e locais. O que valia a versão dos humildes e iletrados que mal sabiam expressar-se corretamente? Que consideração seria dada àqueles desconheciam a lei, seus agentes e seus artifícios diabólicos?
Do ponto de vista fundiário, mesmo ainda somente em projeto, a rodovia causou a grilagem ou a especulação nas terras litorâneas. Uma grande leva de posseiros perdeu suas terras para o recém-chegado endinheirado e mais informado que tinha a mente na futura valorização das terras litorâneas, ou para o ardiloso grileiro de terras que diante da ingenuidade e da ignorância dos caiçaras assesta-lhes golpe de morte tomando-lhes a única riqueza dessa população sofrida – a terra para suas roças, para suas casas e para seu rancho de canoa.
O caiçara morre, alguns fisicamente, muitos espiritualmente, o que configura genocídio de uma população. Desaparecem de cena os atores principais: o pescador artesanal, o roceiro, o cantador de festas, as benzedeiras, os dançarinos, os artistas anônimos. O cenário está irreconhecível: não há mais ranchos de canoas ou casas de pescadores à beira – mar. Os mangues estão destruídos, o jundú foi ocupado por mansões, hotéis e campings, o rio está sujo e o mar poluído. Homens e mulheres perderam o domínio sobre o mar e a terra, seus filhos não sabem tecer uma rede, construir uma canoa, fazer uma tisana de ervas medicinais, esqueceram os nomes das árvores e dos animais. São agora faxineiros, jardineiros, serventes, pois apesar de versados nas coisas da pesca, da caça e da lavoura, são analfabetos para os novos signos. No mundo novo só lhes cabe papéis subalternos.
A destruição do mundo caiçara fica patente nas alterações que a partir da economia alteram todas as estruturas sociais: Os caiçaras perdem as suas terras (muitas vezes por intermédio da violência, como é o caso da Caçandoca), deixam de trabalhar nas atividades agrícolas, são expulsos da praia para o sertão e para a periferia pobre da cidade.
O espaço, produção social, apresentará outra feição – a paisagem será outra, os caiçaras perderam o domínio dos espaços privilegiados nas principais praias. Desapareceram as casas de pescadores e os ranchos de canoas à beira-mar. Desapareceram as roças. Os novos donos do pedaço serão os veranistas, os empresários da hotelaria, de restaurantes e de imobiliárias.
Vão ocorrer mudanças culturais com a extinção das festas do Divino, dos Padroeiros, das danças da chiba, do Moçambique. Extinguem-se os artistas populares da música, da dança, do artesanato.
Perdem-se os conhecimentos técnicos e uma complexa gama de conhecimentos da natureza, que possibilitaram, em outros tempos, a afirmação do caiçara como senhor do mar : as técnicas de tecer a rede para fazer o tresmalho, o picaré e a rede de puxar; as técnicas de construção de canoas; a arte de navegação; a interpretação das variações climáticas e do comportamento do mar; o conhecimento das espécies marinhas e da época de sua pesca.
Da mesma forma perdem-se os conhecimentos relacionados com as atividades agrícolas.
Perde-se os conhecimentos herdados dos indígenas: palavras tupi- guarani, artesanato de cestaria, fiação da fibra do tucum e de outras plantas, uso medicinal da flora, etc.
Devido à mudança na base econômica, que tirou-lhes a terra da roça e fechou-lhes o acesso ao mar, o caiçara terá que buscar a sua sobrevivência em outras atividades econômicas. Os seus conhecimentos antigos são inúteis no novo sistema econômico. Os antigos pescadores, roceiros e artesãos exercem agora as profissões de zeladores, caseiros, jardineiros e outras atividades não qualificadas na construção civil, hotéis e restaurantes. Muitos conseguem apenas empregos temporários durante a temporada de verão ou estão sujeitos à insegurança no emprego. Um grande número não encontrou seu nicho na nova sociedade, por questões de idade, de saúde ou de estranhamento cultural. Esses últimos podem ser encontrados marginalizados, alcoolizados ou mendigando por todo o município.
A família é fragmentada, porque o espaço foi fragmentado. As propriedades patriarcais foram perdidas e as várias gerações que compartilhavam o mesmo espaço espalharam-se até mesmo por outros municípios. Acabou-se o espírito comunitário devido à essa diáspora. Vale lembrar que a comunidade é construída principalmente a partir das relações de vizinhança e do trabalho conjunto.
Para aqueles que viveram os velhos tempos, restou a insatisfação indefinível de perda de riquezas materiais e espirituais. Perdeu-se o elemento lúdico que permeava as atividades cotidianas (fonte para tantos “causos” caiçaras bem- humorados). O mundo ganhou um outro ritmo, porque o caiçara, além de deixar de ser dono do próprio espaço, perdeu, também, o domínio de seu tempo.
Os vilões desse vergonhoso episódio foram (e ainda são) empresários do comércio imobiliário, advogados vindos de fora e, até mesmo, o poder público, desde sua esfera municipal, com crescentes aumentos de impostos sobre a terra, até os poderes judiciais do Estado que julgam sempre favorecendo os letrados em detrimento dos analfabetos, os maliciosos em detrimento do ingênuos, os usurpadores em detrimento dos honestos.
Refletindo as mudanças econômicas, o espaço passa a ser reorganizado, segundo as novas relações sociais. Os espaços mais valorizados nas melhores praias passam a ser exclusivas dos mais abastados: Praia da Tabatinga, do Pulso, Vermelha do Sul, Praia Grande, Tenório, etc.
Homens e mulheres caiçaras mais idosos sentem-se deslocados nesse novo e, em muitos aspectos, pior mundo: Seus conhecimentos e técnicas de trabalho não tem aplicação, pois não tem terra pra cultivar, tampouco acesso ao mar para pescar.
A frieza das estatísticas não cita os nomes da pessoas lançadas à mendicância, a idade e o estado das crianças que tiveram suas vidas precocemente ceifadas, dos filhos e netos de caiçaras lançados à criminalidade.
Os números da ONU mostram a brutal concentração de riquezas produzidas pelo país. Retrato dessa sociedade que se ergue às custas da exclusão de milhares de pobres agricultores e pescadores pelo país afora. Uma sociedade construída pela violência.
Diante da dificuldade em perceber o encadeamento dos acontecimentos e o papel dos diversos agentes no processo de grilagem de terras, a reação dos excluídos, em muitos casos, deságua em uma postura também violenta. Algumas pessoas descambam para a criminalidade.
Os novos donos do pedaço erguem suas mansões à beira-mar, atrás de muros altos, em condomínios fechados, procurando erguer defesas contra os assaltantes de sua precária segurança.
Que solução a nova organização social cria para esses deserdados? Evidente que não há combate às causas, apenas às conseqüências : constroem nova cadeia e aumentam o policiamento.
Com a grande mudança na economia local, ou melhor, com a supremacia da economia capitalista, o espaço dos homens do litoral precisou ser redefinido, pois estavam ocupando os melhores lugares à beira-mar. E o espaço do proletário, pelo novo sistema econômico, há de ser o espaço marginal: nos mangues, nos morros, às margens dos rios. E os caiçaras foram expulsos, em muitos casos com violência e enganação, para longe do mar, para perto dos morros. Para distante da praia, para perto da morte.
Para fazer justiça e para a melhoria da qualidade da vida, os caiçaras reunidos na Associação em Defesa do Povo Caiçara ADPC, fundada em 21 de abril de 2002, pede:
1 - a aplicação das medidas indicadas pela Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, na CPI das Indenizações Ambientais, publicada no Diário Oficial do Estado, na data de 04 de julho de 2001:
2 - A atuação da Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo, para fazer o levantamento das irregularidade fundiárias e devolver a terra aos caiçaras que foram vítimas de grilagem de terra;
3 – O Plano de Manejo do Parque da Serra do Mar, para que possamos ter o direito de sobreviver dos frutos da terra, sem descurar de sua preservação.

Amarildo Cesário do Prado
Coordenador da ADPC

Jairo dos Santos - PT
Vereador

Domingos dos Santos
Vice-Prefeito

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