Opinião

Ninguém é obrigado a ser infiel porque ninguém é obrigado a ser fiel

João Pereira Coutinho
Infidelidade: não existe outro tabu que seja tão universalmente condenado e tão universalmente praticado. Boa frase. Não é minha. Pertence a Esther Perel, e a revista "1843", do grupo "The Economist", dedica-lhe um artigo ("What's Wrong with Infidelity?" ).

A dra. Perel, belga, 58, é a psicóloga do momento para problemas de conjugalidade —e infidelidade. A sua missão é simples: desdramatizar. O casamento não extingue os desejos que permanecem na natureza humana. E a sociedade contemporânea não ajuda: antigamente, diz ela, era possível dar o nó e passar anos e anos com a mesma criatura (e um sexo assim-assim). Hoje, a oferta é variada (e a procura, idem).

Além disso, acrescenta a doutora, é um erro condenar o infiel e simpatizar com o elemento enganado. As "culpas", se a palavra se aplica, são muitas vezes repartidas. E, em certos casos, residem apenas no enganado. Como explicar, então, o moralismo que paira sobre o assunto?

Resposta da doutora: porque a fidelidade é a última coisa que define um casamento. Já não é o sexo, que começa antes. E já não são os filhos, que podem nem aparecer. É a fidelidade, essa relíquia.

Compreendo as sutilezas de Esther Perel. Mais: conheço casos de infidelidades que salvaram casamentos. Mas também conheço infidelidades que destruíram famílias. Eis o problema dos vários raciocínios da dra. Perel: há falhas lógicas evidentes que, moralismos à parte, não me convencem.

Comecemos pela primeira: o desejo permanece na natureza humana? Mil vezes sim. E qualquer pessoa "comprometida" (peço desculpa pela deselegância do termo) já sentiu vontade de comer meio mundo. Mas o que é válido para o desejo é igualmente válido para qualquer inclinação humana, como a violência.

Dito de outra forma: o fato de algo ser "natural" não significa que será moralmente bom. Se assim fosse, eu poderia esmurrar família, colegas, alunos e meros desconhecidos com a mesma naturalidade com que respiro. E, se um deles me acusasse ou processasse, seria cômico (para dizer o mínimo) eu afirmar apenas: "Não me reprima, por favor. Eu sou humano."

A vida em sociedade implica certos sacrifícios; o maior deles, creio, é sacrificar o selvagem que existe em nós. Mas posso estar errado. Se estiver, avisem-me: a minha lista é longa.

E a sociedade? Concordo com Perel: se podemos satisfazer vários caprichos com uma visita no shopping, é inevitável que esse imediatismo contamine as relações pessoais. Zygmunt Bauman (1925-2017), um grande sociólogo que morreu esta semana, escreveu abundantemente sobre a matéria.

Mas o argumento de Perel, uma vez mais, parte de um fato para a "normalização" ética do fato. Porque existe uma diferença entre afirmarmos que as infidelidades pessoais são como as nossas visitas ao shopping; e, por outro lado, afirmarmos que é natural que assim seja.

Se aceitarmos essa premissa, qualquer comportamento humano, do mais excêntrico ao mais aberrante, deve ser permitido e louvado. Para que educar os filhos quando isso é despesa? Para que cuidar dos pais dementes quando isso cria angústia? Para que ajudar o irmão psicótico ou a irmã viciada, quando o resultado dessa ajuda é incerto? E etc. etc.

Finalmente, são precisos dois para dançar o tango? Absolutamente. Mas a afirmação de Perel de que a infidelidade, muitas vezes, é "culpa" da pessoa enganada acaba por ser uma irônica contradição com o seu discurso "liberal", criando uma falácia determinista bastante "démodé".

O infiel só seria "vítima" se não existissem outras alternativas —como a comunicação, a separação, o divórcio— à sua inteira disposição. Nas sociedades contemporâneas, ninguém é "obrigado" a ser infiel pelo simples motivo de que ninguém é "obrigado" a ser fiel.

Esther Perel deveria encontrar outros argumentos para "desdramatizar" a infidelidade. Do ponto de vista lógico, e estritamente lógico, as explicações da doutora não são fiéis à racionalidade. 

Original aqui

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