Opinião

É difícil votar porque ninguém nunca realmente representa ninguém

Contardo Calligaris
A cada eleição, decidir em quem votar me parece mais difícil. Para escolher alguém que me represente, eu estou ficando estranhamente exigente.

Nas primeiras vezes em que votei (na Itália, no fim dos anos 1960), parece-me que a decisão era relativamente simples. Os candidatos não eram perfeitos; nenhum deles era meu "sonho de consumo" político. Com poucas exceções, aliás, eles eram tão ruins ou medianos quanto a maioria dos de hoje. Conclusão: os candidatos não mudaram, quem mudou fui eu.

No passado, escolhia um candidato porque ele pertencia a um movimento pelo qual eu me sentia, de alguma forma, levado. Nesse contexto, não votar em Fulano por algo que ele disse ou por ele ter feito uma aliança sinistra era apenas uma demonstração de que nosso engajamento era morno.

Quem hesitasse em votar em um candidato por causa dessas "picuinhas" só poderia ser um individualista enrustido: uma antipatia ou um dissenso "pontual" não valia nada diante da causa coletiva e maior que seria servida pela eleição do candidato. Pois bem, isso mudou. Ou melhor, como já disse, a gente mudou.

Mariza/Mariza/Editoria de Arte/Folhapress
Ilustração da coluna Contardo de 06 de outubro de 2016
Hoje, o sacrifício das "picuinhas" me parece injusto e quase impossível. Cada coisa "mínima" me dá vontade de votar alhures ou de não votar. Quando converso sobre escolhas eleitorais, minha fala é parasitada por um exército de adversativas; qualquer hipótese esbarra num "mas".

Em novembro, para as eleições presidenciais americanas, votarei em Nova York. Se minha residência eleitoral fosse num Estado disputado, como a Flórida, seria uma outra história. Mas o Estado de Nova York é solidamente democrata, e meu voto não faz diferença. Curiosamente, a sensação de que meu voto não conta é reconfortante, porque nem Hillary nem Trump me representam.

No fim, votarei democrata, mas, idealmente, deveria me reconhecer no Partido Libertário, que tem um candidato, Gary Johnson. Só que Gary Johnson me parece falar qualquer coisa e seu contrário: ele tampouco me representa.

Obama foi uma espécie de ventania, uma onda. As pequenas diferenças se tornavam irrelevantes na sensação de a gente se juntar, para usar uma expressão antiga, ao movimento da história (que não existe, claro). Hoje essa sensação sumiu, e eu me tornei estranhamente exigente.

Não é só o meu caso. Escuto os amigos paulistanos ao redor de mim:

Haddad foi um bom prefeito, MAS não quero votar no PT, para "eles" aprenderem que a gente não é trouxa e não gosta de alianças esdrúxulas (Temer, Maluf, Chalita, quem mais?).

Erundina é ótima, MAS ouvi ela atacando Doria só por ele ter dinheiro. Desde quando ter feito dinheiro trabalhando é uma culpa?

Marta fez os CEUs e o Bilhete Único, sem contar a TV Mulher, MAS... o que foi que ela disse? Que ela nunca foi de esquerda?

E a relação do Doria com Alckmin? E a história de que ele vai aumentar a velocidade máxima na marginal? E aquele cashmere no pescoço, vintage anos 1960?

Na verdade, se não formos carregados por uma onda coletiva, nenhum candidato vai ter o que precisa para nos representar nunca.

Aqui seria o momento em que muitos lamentariam o "fim dos grandes ideais" e a volta "iníqua" aos particularismos ou, pior ainda, aos nossos gostos singulares. Os mesmos também chorariam sobre o fim da política etc.

Penso diferente. A democracia representativa funcionou até aqui à condição de aderirmos a um grupo e de votarmos segundo a sugestão ou o mandato do grupo, aparando as arestas de nossas exigências singulares. Ou seja, à condição de que a gente sacrificasse nossas "picuinhas" sobre o altar do bem coletivo, considerado supremo.

Hoje, acho difícil votar em alguém que me represente –porque, simplesmente, parece-me que ninguém nunca realmente representa ninguém.

Eu enxergo essa mudança como um sucesso civilizatório: diminuiu nossa disposição a adotar as ideias e as condutas de um grupo, diminuiu nossa capacidade de renunciar, pelo bem do grupo, às exigências do que há de singular em nós e em nossas esperanças políticas.

Talvez, a médio prazo, isso seja incompatível com a democracia eleitoral representativa. Mas não por isso deveríamos ser nostálgicos de nosso passado partidário. Ao contrário. Seria a ocasião de inventar novas formas de democracia –uma democracia para cidadãos ciosos de sua singularidade, desconfiados de grupos e coletivos. Vamos ver.

Original aqui

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