Opinião

Uma Venezuela na Europa

João Pereira Coutinho
Querido leitor: você deseja tomar o poder e implementar uma política radical que o povo, em circunstâncias normais, jamais aceitaria? Fácil: aprenda com os grandes exemplos históricos e encontre "inimigos" expiatórios.

Para ficarmos nos casos mais extremos, Lênin e Hitler não converteram os respectivos países à revolução pelo "mérito" das suas "propostas". Antes disso foi preciso criar entre os russos e os alemães a sombra de um inimigo imaginário, capaz de justificar as ações mais extremas.

Lênin fez isso com a velha ordem czarista; e o seu sucessor, Stálin, apenas alargou o cardápio para incluir classes profissionais inteiras, tidas por "inimigas do povo". O campesinato russo (os "kulaks") foi o exemplo mais trágico da paranoia persecutória de Stálin.

Hitler agiu de igual forma com os judeus, a quem atribuiu todas as responsabilidades do mundo (um clássico). A própria derrota na Primeira Guerra Mundial tinha dedo judaico. O vexame do Tratado de Versalhes também.

É por isso que não compro a versão açucarada sobre a crise na Grécia. Segundo os relatos preguiçosos que leio por aí, o Syriza venceu as eleições com duas promessas meritórias: manter a Grécia na zona do euro (uma exigência da maioria do povo) e acabar com a austeridade dos últimos cinco anos.

Qualquer criança com um mínimo de instrução seria capaz de entender a natureza contraditória e até mentirosa dessas duas promessas. Continuar no euro sem austeridade significava, muito simplesmente, que alguém teria que pagar as contas dos gregos.

E esse "alguém" seria o resto da Europa, a começar por países como Portugal ou Irlanda, que também comeram o pão que o diabo amassou. Por outras palavras: os gregos, vergonhosamente iludidos, elegeram um partido que prometia o paraíso com o dinheiro dos outros.

Sem surpresa, a Europa disse não a tamanha generosidade. E foi pedindo, ao longo de meses de pura farsa grega –repito, a Europa foi pedindo–, que o governo de Atenas (composto pela extrema-esquerda mas também pela extrema-direita neonazista: convém não esquecer) apresentasse propostas credíveis para cortar gastos e fazer reformas. Só haveria ajuda financeira se, do lado grego, houvesse responsabilidade orçamental.

As propostas de Atenas, de um amadorismo confrangedor, nunca convenceram. E, em gesto melodramático, o governo de Alexis Tsipras abandonou as negociações para anunciar um referendo. O povo será convidado a responder se aceita (ou não) o chicote da austeridade europeia (cortes em aposentadorias, subida de impostos etc.).

O filme não precisa de grandes comentários, exceto para dizer duas coisas.

A primeira é que, ao contrário do que se pensa (e escreve), o Syriza nunca esteve interessado em "negociar" coisa nenhuma. O Syriza fingiu negociar. Mesmo a promessa de que o país continuaria na zona do euro foi uma concessão tática para ganhar votos e tomar o poder. Ficar no euro não fazia parte da DNA original do Syriza.

A segunda é que o Syriza acredita que, perante a recusa da União Europeia e do Fundo Monetário Internacional em continuar a emprestar dinheiro sem contrapartidas sérias, estão encontrados finalmente os seus "inimigos do povo", a quem irão atribuir todas as culpas pelo fracasso das "negociações".

Identificados os inimigos, o Syriza imagina que poderá finalmente –e legitimamente!– transformar a Grécia numa espécie de Venezuela em pleno Egeu, cometendo o tipo de loucuras –nacionalizações, controle de preços etc. etc.– que fizeram moda em Caracas. Com os resultados conhecidos.

Fatalmente, o Syriza esquece-se do passado e do futuro.

No passado, existiu um povo inteiro a quem foi prometida a manutenção do país na zona do euro. Se isso não acontecer, e os gregos regressarem ao velho dracma (com uma desvalorização de 50% face ao euro, digamos), o caos social irá paralisar o país. Por mais "inimigos externos" que se inventem, a realidade é sempre mais forte que a fantasia.

Mas esse caos é a parte menor do problema. A parte maior é que, suspeita minha, o Exército não ficará de braços cruzados, assistindo à festa da arquibancada.

No momento em que escrevo, ainda ninguém sabe com rigor como irá terminar o filme grego. Mas se o país sair do euro e começar a ser governado por princípios bolivarianos, duvido que a Grécia sobreviva como democracia na Europa.

Original aqui

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