Opinião

Duas revoluções, dois destinos

Alfredo Sirkis
Os recentes incidentes envolvendo a visita ao Brasil da blogueira cubana Yoani Sánchez, hostilizada por turbas agressivas da "Solidariedade com Cuba", foram também uma oportunidade perdida para debater o argumento de que a ditadura "de esquerda" seria o inevitável preço a pagar pelos grandes "avanços sociais".

É comum escutarmos que as restrições à liberdade de expressão e de imprensa, a ausência de eleições livres, de pluralismo político ou de alternância no poder, passado mais de meio século da revolução cubana, se justificam por suas conquistas na educação e na saúde e pela ausência de fome e miséria absoluta na ilha. O argumento jamais se sustentou na comparação com outra revolução que a precedeu em 11 anos: a da Costa Rica, de 1948, que obteve notáveis avanços em educação e saúde e garantiu um padrão de vida muito mais elevado, sem o sacrifício das liberdades, do pluralismo, do respeito aos direitos humanos e de um Judiciário independente.

Hoje a maioria da população costa-riquenha é de classe média, seu salário mínimo é 15 vezes maior que o de Cuba, seu produto interno bruto (PIB) e a sua renda per capita são os mais altos da região. Há três vezes menos suicídios do que em Cuba. A Costa Rica tem políticas ambientais e ecoturismo de referência internacional e ambiciona tornar-se o primeiro país carbono neutro do mundo.

A revolução de 1948, liderada por José María Figueres Ferrer, conhecido como Don Pepe Figueres, derrubou o regime oligárquico do presidente Teodoro Picado e do seu mentor político Rafael Calderón Guardia, que fraudavam sistematicamente as eleições, como na nossa República Velha. Foi desencadeada em reação a um "autogolpe" - queimaram as listas com os resultados eleitorais, privando da vitória o candidato progressista Otilio Ulate, e assassinaram um dos líderes oposicionistas, Carlos Luis Valverde. Detalhe curioso: o pequeno partido comunista local, o Partido Vanguardia Popular (PVP), apoiava ativamente o regime oligárquico.

A desmobilização de suas milícias, em troca da garantia dos direitos sindicais e da sua legalidade, acertada numa dramática negociação entre o secretário-geral do PVP, Manuel Mora, e José Figueres, na floresta de Ochomogo, foi decisiva para a relativamente incruenta vitória da revolução após 40 dias de combates.

A junta revolucionária, liderada por Don Pepe, nacionalizou os bancos para democratizar o crédito - até então exclusividade da burguesia compradora (importadora) -, permitindo desenvolver a agricultura e a indústria. Investiu obsessivamente na educação, instituiu a autonomia do Judiciário. Dissolveu seu próprio exército revolucionário depois de uma tentativa de golpe do então ministro da Defesa, Edgard Cardona, inconformado com o tratamento leniente dado por Figueres aos comunistas. Isso não o impediu de derrotar, com o povo em armas, uma invasão do ditador Anastasio "Tacho" Somoza (pai), da Nicarágua, onde se haviam exilado Picado e Calderón.

Ao final de 18 meses, Figueres entregou o governo a Otilio Ulate, legitimamente eleito nas eleições "meladas" do ano anterior, apesar de notórias divergências entre ambos. Voltou à sua Fazenda La Lucha sin Fin, onde ficou até 1953, quando disputou democraticamente e foi eleito presidente.

Cercada de ditaduras por todos os lados até anos recentes, a Costa Rica jamais deixou de promover eleições livres a cada quatro anos. Poderia ter sido assim em Cuba 11 anos mais tarde?

Don Pepe apoiou Fidel Castro com dinheiro e armas. Foram amigos, mas romperam quando Fidel se aliou ao bloco soviético. O contexto da guerra fria - em 1948, nos primórdios, em 1960, no apogeu -, com uma quase imediata hostilidade norte-americana à revolução cubana, fez a diferença, bem como a personalidade de Fidel.

Entre os líderes das duas revoluções ressaltam diferenças de idade, origem social e experiência de vida: Don Pepe, filho de um modesto médico catalão, era pequeno fazendeiro, tinha 42 anos ao liderar sua revolução. Conhecia bem os Estados Unidos, onde estudara. Sua primeira esposa, Henrietta Boggs, era americana. Ele sabia explorar com habilidade as contradições internas em Washington e nunca quis aliar-se à URSS, embora tenha nacionalizado a United Fruit, o flagelo das Repúblicas bananeiras. Fidel, filho de um grande latifundiário de origem galega, era universitário quando chefiou o assalto ao quartel de Moncada. Depois conheceu apenas a prisão, o exílio e Sierra Maestra. Don Pepe era de ouvir, negociar e pactuar. Fidel nasceu para mandar e ser obedecido.

Com pouco sangue e sem paredón, a revolução de 1948 não figura no panteão histórico-jornalístico. É praticamente desconhecida, ao contrário das revoluções trágicas ou das derrotas heroicas dos mártires, não importa quão patéticos ou desavisados. Uma revolução com final feliz, um país que há 65 anos "caiu numa democracia", para nela permanecer até hoje, um líder revolucionário que resolveu abrir mão do poder para depois disputar eleições livres, em 1953 e 1970, são decididamente indignos do rol de eventos e personagens históricos de primeira linha...

Don Pepe Figueres, que gostava de se definir como "socialista utópico", nunca cultivou o "Patria o Muerte" ou outro necrófilo brado retumbante do gênero. Seus compatriotas, los ticos - os costa-riquenhos - pacíficos e cosmopolitas, são, com toda a probabilidade, mais felizes. No entanto, a felicidade - gota de orvalho numa pétala de flor -, pelo visto, não é um indicador relevante no fazer História do nosso tempo.

Essa pacata democracia sexagenária, ainda que em terra de tantos vulcões, não evoca o menor romantismo, não vale sequer uma camiseta ou boina negra com estrelinha vermelha. Mas constitui intenso objeto de desejo na "geração Y", de Yoani Sánchez, dos filhos daquela outra revolução, a tão exaltada em prosa e verso.

* Alfredo Sirkis é escritor, jornalista e deputado federal da Rede.

Original aqui

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