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O ano em que sonhamos perigosamente

Um breve apanhado do ensaio “Da Dominação à Exploração e à Revolta”, do mais novo livro de Slavoj Zizek, um intelectual que também pensa perigosamente

Márcia Denser
No início deste ano, recebi o último livro de Slavoj Zizek (título acima, S.Paulo, Boitempo, 2012) – um intelectual que também pensa perigosamente! Uma coleção de ensaios que englobam uma abordagem totalizante de fatos que marcaram as primeiras décadas do século XXI: o crash financeiro de 2008 nos EUA, seu repique na UE e a eclosão, em 2011, de movimentos mundiais – da Primavera Árabe até o Occupy Wall Street.

Servindo como uma espécie de Manual para a Mobilização Emancipatória que, segundo o autor, se coloca pela primeira vez em nível planetário, aqui é o velho Lenin da pergunta “o que fazer?”, o filósofo invocado, combinando-se marxismo e psicanálise na linha de Marcuse e Erich Fromm, tudo pra decifrar a “circulação autopropulsora do capital”, que hoje prescinde não só dos trabalhadores como até da burguesia.

Hoje farei um breve apanhado do primeiro ensaio “Da Dominação à Exploração e à Revolta”, no qual Zizek, dialogando com Frederic Jameson (As sementes do tempo, S.Paulo, Ática, 1997), outro dos meus críticos preferidos, aborda questões chave como trabalho, não-trabalho, desemprego crônico, suas ironias e paradoxos, e as várias formas de exclusão e exploração.

Ele abre a análise dizendo que o capitalismo prospera porque evita seus grilhões, escapando para o futuro. Então não há como alcançá-lo. Razão pela qual devemos abandonar a noção falsamente otimista de que a humanidade inevitavelmente “só se propõe as tarefas que pode resolver”: hoje enfrentamos problemas para os quais não há nenhuma solução clara, garantida pela lógica da evolução.

Então por onde começar? Na esfera da economia, no ponto extremo da “unidade dos opostos”, é o próprio sucesso do capitalismo (alta produtividade) que causa o desemprego, isto é, torna inútil uma quantidade cada vez maior de trabalhadores, e o que deveria ser uma benção (necessidade de menos trabalho árduo), torna-se uma maldição.

Assim, o mercado mundial é, quanto à sua dinâmica imanente, “um espaço em que todos já foram trabalhadores produtivos, mas o trabalho começou a se valorizar fora do sistema”.

No processo de globalização capitalista, a categoria dos desempregados adquiriu uma nova qualidade, além de “exército industrial de reserva”: devermos considerar na categoria de “desemprego” as populações maciças ao redor do mundo que foram “desconectadas da História”, excluídas deliberadamente dos projetos modernizadores do Primeiro Mundo, os chamados “Estados falidos” – Congo, Somália, Líbia, etc., vítimas da fome ou de desastres ambientais ou de ambos, presas aos pseudo-arcaicos “ódios étnicos”, alvos da filantropia em geral, das ONGs em particular e da “guerra ao terror” em si.

A categoria dos desempregados, portanto, deve ser expandida para abranger a amplitude das populações, desde desempregados temporários, passando pelos não mais empregáveis e permanentemente desempregados, até as pessoas que vivem em cortiços, guetos, favelas, descartados inclusive por Marx como “lumpemproletariado” ou a “ralé”, segundo Hanna Arendt, uma vez que não têm consciência de si como “classe”.

Então o “populacho” está de volta, surgindo no próprio cerne das lutas? Sim, e tal recategorização muda todo o “mapeamento cognitivo” (Jameson) da situação: o pano de fundo inerte da História torna-se agente potencial da luta emancipatória.

Alterando o quadro, então temos: l) trabalhadores; 2) exército de reserva dos (temporariamente) desempregados; 3) os permanentemente inempregáveis; 4) os “anteriormente empregáveis” mas agora “inempregáveis”; 5) os “ilegalmente empregados”, incluindo os trabalhadores do narcotráfico, mercados negros diversos, máfias, favelas até as mais sórdidas formas de escravidão (inserindo aqui as crianças, por que não?).

O fato é que estes pretensamente “excluídos” são totalmente incluídos no mercado mundial, algo que Jameson não leva em conta. A exemplo do Congo: depois da queda de Mobutu, o país deixou de existir como Estado unificado operante, tornando-se uma multiplicidade de territórios governados por chefes guerreiros que controlam suas terras por um exército (constituído inclusive por crianças drogadas) e cada um deles com ligações comerciais com uma corporação estrangeira que explora riquezas minerais da região. Esta organização atende aos dois lados: a corporação ganha o direito de minerar sem pagar impostos e os chefes ganham dinheiro e… o resto – o povão – fica com zero vezes zero, mesmo fazendo todo o trabalho.

A ironia suprema é que muitos desses minérios são usados em produtos de alta tecnologia como laptops, celulares, Ipods e Ipads, etc. usados pelo “mundo civilizado e incluído” (civilizado como? incluído em que? hem?).

Outro dado importante levantado por Zizek: a categoria dos “anteriormente empregados” deveria ser complementada pelo seu oposto – os estudantes universitários sem nenhuma chance de encontrar emprego. Toda uma geração de jovens sem perspectivas futuras gera protestos em massa. E a pior maneira de resolver esta lacuna é subordinar a educação diretamente às demandas do mercado – cuja dinâmica torna antecipadamente “obsoleta” a educação dada nas universidades.

Estes estudantes não-empregáveis estão predestinados a desempenhar um papel organizador fundamental nos futuros movimentos emancipatórios, como já fizeram no Egito, nos protestos europeus, desde a Grécia ao Reino Unido, o nos EUA através do Occupy Wall Street.

A mudança radical nunca é desencadeada pelo “pobre” de forma a criar uma situação explosiva: portanto, a juventude educada inempregável, combinada à moderna tecnologia digital disponível, oferece a perspectiva de uma situação verdadeiramente revolucionária!

Que será extremamente bem-vinda, porque inescapável! Uma questão de vida ou morte e sobrevivência da honra, dignidade e da própria civilização humana!

Publicado originalmente no "congressoemfoco"

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