Opinião

O horror de Santa Maria

O Estado de S.Paulo
A maior catástrofe já ocorrida numa casa de espetáculos no Brasil foi o incêndio criminoso que matou 503 pessoas em um circo de Niterói, em dezembro de 1961. A segunda maior - o fogo que irrompeu na madrugada de domingo na boate Kiss, em Santa Maria, Rio Grande do Sul - deixou pelo menos 233 mortos e uma centena de feridos. Queimaduras e sequelas em sobreviventes, como a chamada "pneumonia química", resultado da inalação de fumaça, poderão elevar o número de vítimas. Ninguém premeditou a nova tragédia. Mas a intenção de matar foi só o que faltou na receita que a tornou inevitável. Cerca de mil jovens se divertiam ao som da banda gaúcha Gurizada Fandangueira, superlotando um ambiente em que só havia uma porta de entrada e saída com não mais de 4 metros de largura (decerto para impedir o ingresso de penetras) e nenhuma indicação de como alcançá-la em caso de emergência. Tampouco havia janelas. A noitada se destinava a arrecadar dinheiro para festas de formatura da Universidade Federal da cidade (UFSM), o mais importante polo acadêmico do Sul do País, com 27 mil estudantes.

Quando o vocalista do grupo acendeu um sinalizador de efeito pirotécnico, como se costuma fazer nesses shows, faíscas aparentemente inflamaram o papelão do revestimento acústico do teto. Pode ter havido um curto-circuito. O guitarrista da banda e um segurança contaram que, vendo as chamas se formar, tentaram acionar um extintor de incêndio - que não funcionou. No escuro, os primeiros a perceber o perigo trataram de escapar - apenas para serem barrados por seguranças porque não tinham pago as suas comandas. Quando eles se deram conta do que realmente se passava - notando, como o público, que a música havia parado -, e deixaram de bloquear a saída, era tarde. A multidão arremetia em desespero de um lado para outro. Muitos confundiram o acesso aos banheiros com a porta da rua. Os bombeiros encontraram ali muitos corpos amontoados. A causa de 90% das mortes foi a asfixia, não queimaduras ou pisoteamento.

O escândalo maior era a situação irregular da boate - com o alvará de funcionamento e o aval do Corpo de Bombeiros vencidos desde o ano passado. Um dos donos disse à Polícia que havia pedido a renovação. O delegado que o ouviu ficou de apurar se é verdade e, nesse caso, por que a autorização ainda não tinha sido dada. Qualquer que tenha sido o motivo, e ainda que não se possa atribuir a tragédia à falta do alvará, é óbvio que, nessas condições, a Kiss não podia estar funcionando. Ontem, cumprindo decisão judicial, foram presos dois sócios da boate e dois integrantes do conjunto. O uso de sinalizadores em locais fechados é outra controvérsia. Em 2003, um show pirotécnico durante a apresentação de uma banda matou 95 pessoas e feriu 160 em West Warwick, no Estado americano de Rhode Island. A história se repetiu na virada de 2004 no clube Cromañón, de Buenos Aires. Dessa vez, a pirotecnia provocou 194 mortes e feriu mais de 1.400. Na Argentina, o horror serviu pelo menos para a adoção de novas regras de segurança nas casas noturnas do país.

Em Santa Maria, o contraponto imediato à tragédia foi a rápida e competente mobilização do setor público federal e estadual, civil e militar - começando pela conduta exemplar da presidente Dilma Rousseff. No Chile, onde participava de uma reunião internacional, tão logo foi informada do acontecido, disparou uma sequência de telefonemas, transmitindo instruções precisas a ministros de Estado e outras autoridades. Falou também com o governador Tarso Genro. Em seguida, anunciou, sem segurar as lágrimas, que seguiria para a enlutada cidade gaúcha - "é lá que eu tenho de estar". Chegando ao Ginásio Municipal, para onde os corpos tinham sido levados, emocionou-se novamente com a dor de seus familiares e pessoas próximas. Antes de se retirar, revelando uma sensibilidade incomum ainda mandou que os presentes, sob um sol de 35°C, fossem encaminhados a uma área coberta, na companhia de assistentes sociais.

O mais dependerá da revolta, a "única emoção útil", no dizer do gaúcho Luis Fernando Veríssimo. "A revolta pede providências para que tragédias assim não se repitam."

Original aqui

Twitter

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Mosca-dragão

Pegoava?

Jundu