Coluna do Mirisola

A Última Etapa

"Close no piloto-galã. Apesar do rosto oculto pelo capacete, sabemos que ele tem uma expressão barbeada, rente, suave e realizada, sorri cinicamente / corta"

Marcelo Mirisola
Aerocuble de Brasília.

Mauricinho desce da Mercedes-Benz conversível da namorada, e se despede com um beijo mais ou menos apaixonado. Ele veste um macacão de piloto. Entra no hangar, cumprimenta mecânicos e faz o tipo gente boa. Solta alguma piada.

Comenta o resultado do futebol. Há um clima de cumplicidade e felicidade pairando no ar, realização.

- Domingão o bicho vai pegar, doutor. Dois a um pro Gama – arrisca o mecânico.

- Esse jogo já era meu irmão, esquece.

O piloto mauricinho, que também é dono de um time da segunda divisão, jamais perdeu uma aposta, nem quando jogava a própria mulher (ou as mulheres) na roda.

- Tá checado, doutor. Tudo óquei.

Avião abastecido, pronto para o vôo. O piloto puxa o mecânico para perto de si e os dois trocam algumas palavras ao pé d’ouvido. Ato contínuo, o mecânico tira um envelope do bolso de trás do macacão e passa para o piloto:

- Abastecimento completo, doutor! – então, o mecânico presta uma continência, despede-se do patrão e volta para o hangar.

Em seguida, numa solidão bonita que deixa o final de tarde mais cinematográfico, vemos o piloto se dirigindo à pista.

O jatinho decola.

Já dentro da cabine, o playboy comunica-se com a torre: “Distrito Federal. Plano de vôo confirmado”.

Juscelino sorridente cumprimenta um grupo de candangos .A Praça dos Três Poderes é rabiscada numa prancheta enquanto Pelé  recebe uma bola dentro da área, aplica um chapéu no zagueiro sueco e, sem deixar a bola cair, faz um golaço e engana nosso complexo de vira-latas, mulheres de quadris largos e peitões de baralho antigo desfilam no calçadão de uma Copacabana quase em câmera lenta, de repente, uma lestada sinistra muda o tempo e os banhistas são obrigados a sair da praia às pressas, uma criança que chora é arrastada pela mãe: milicos carrancudos e suas respectivas esposas barangas-urutus acompanham o desfile de 7 de setembro, uma senhora que deve ser a Vovó da Casa do Pão de Queijo oferece uma bandeja de quitutes e restos mortais para o presidente Figueiredo que por sua vez ostenta um tórax equino, a Vovó não resiste, joga a bandeja pro alto e chupa os mamilões de sua excelência: a Pça da Sé está lotada e Almino Affonso levanta os braços do doutor Ulysses Guimarães que passa a mão na bunda da Fafá de Belém – ela manda ver no Hino Nacional: Sarney é parido de uma diverticulite aguda, que lança merda na corrente sanguínea do país e culmina num câncer que atinge o pulmão de Dílson Funaro, nem ele nem os fiscais do Sarney aguentam o tranco e morrem todos, mas o câncer não morre, a metástase se transforma num Collor impichado que olha pro relógio e se pirulita do Alvorada de mãos dadas com sua barbie de estimação. Itamar está no sambódromo meio breaco acompanhado de seu ministro da Justiça, de baixo para cima Lílian Ramos entra para a história do Brasil e, sob esse ponto de vista rachado, FHC dá um tapa num baseado gigante e passa a faixa a Lula que garante que não sabia de nada mas é doutor pela Sorbonne para a inveja eterna de FHC que depois de velho e aposentado se entrega à marafa de corpo e alma. O Brasil entra para o primeiro mundo Wonka, e Dilmão assume o abacaxi / corta.

Close no piloto-galã. Apesar do rosto oculto pelo capacete, sabemos que ele tem uma expressão barbeada, rente, suave e realizada, sorri cinicamente / corta.

Aviões atingem as torres gêmeas. Bin Laden anuncia a Era de Aquário.

Perspectiva do Congresso Nacional como se estivesse enquadrado num alvo. O piloto-galã abaixa o manche. Tesão. Queda vertiginosa/ Black-out.  Alguns segundos de silêncio.

2011, Rio de Janeiro, Copacabana. Autoridades, jogadores de futebol e vips de todos os quilates e arrebites desfilam num velório coletivo, reluzente e disputadíssimo.

Voz em off: “ A última etapa da arquitetura de Niemeyer finalmente foi concluída”.  Corta/ Congresso Nacional em chamas.

Sobre o autor

Marcelo Mirisola
Considerado uma das grandes revelações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário. É autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.

Outros textos do colunista Marcelo Mirisola.

Publicado originalmente no "congressoemfoco"

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