Coluna do Mirisola

Sururu com Lambreta

"Espero que Exu não se meta a extraviar meu recado, que esta crônica me ajude a conquistar Andréa, a potranca"

Marcelo Mirisola
Intermediário entre o homem e o sobrenatural, o mensageiro. Foi ele quem ouviu — e anotou, lá do jeito dele — os dramas dos seres humanos e das divindades, esmiuçou passado e futuro, vislumbrou desde as tragédias de Sófocles até o plano de George Bush de invadir o Iraque. Ele mesmo, o próprio. Quem ajudou John Lennon a escrever Imagine (e incluiu a japinha metida a artista na história…) e embalou Mark Chapman a puxar o gatilho ao som da mesma música.

Exu. Entre outras coisas mais úteis e inúteis, também estava lá naquele quarto de motel roubando meu esperma, quando acreditei que o amor não precisava de “um mensageiro” — ou de nada diferente do próprio amor para existir. Fui um tolo, reconheço.

Quebrei a cara. E o sacana estava lá, rindo de mim. Ele e Joana, a possuída.

Hoje, Exu é tido — justa ou injustamente? — como o diabo, e podia tranquilamente assinar horóscopos em veículos de grande circulação se, em primeiro lugar, seus crimes não tivessem sido comutados de modo tão elegante por franceses descrentes como Bastide, e se, na sequência, seu encanto não fosse sistematicamente bombardeado por pastores ignorantes e universais do reino do Edir, pobre-diabo?

Nem tanto. Um sujeito que põe fogo na casa dos outros para virar rei, leva dois amigos a uma luta de morte, ensina a trapaça aos homens, promove guerras em família (troca favores indiscriminadamente, essa é a primeira lei), provoca ruínas generalizadas, enrola os deuses e faz Iemanjá, Oiá e Oxum quebrarem o pau, um sujeito desses, se não é o diabo, está sendo escandalosamente negligenciado. Não há como negar seu encanto e talento. Um tipo desses devia, no mínimo, ter seu parentesco reconhecido. Eu o reconheço.

Um mensageiro que leva o recado que lhe convém. Serviu o último drink a Amy. Em se tratando do dito cujo, a mensagem é inequívoca: e vale a confusão, que é a segunda lei do capeta.

No entanto, Exus — dependendo do cavalo incorporado — podem ser embotados e trapalhões. Teve um que me expulsou do terreiro e disse p’reu ler o evangelho! Cada um tem o Exu que merece. Creio que eles, os Exus, também podem fazer a ponte – aqui e agora – entre o sagrado e vocês, leitores. O negócio é quase democrático, eu diria que a palavra exata é: proporcional.

Assim, antes que me acusem de ser pejorativo ou até mesmo de ser um Exu, posso dizer com orgulho e de boca cheia que não. Na verdade, sou filho do seu Zé com a dona Marietta. Também sou filho de Ogum. Soube disso porque participei de várias macumbas e sinto uma certa afinidade com Pierre Verger, antes de ele ter chegado à Bahia na década de quarenta, e muito antes de ele ter  renascido na África como  Fatumbi. Ele era da mesma estirpe de Saint-Hilaire.  Um nômade.

- Há que se ter cuidado para pisar ao mesmo tempo em dois lugares.

“E só depois retratá-los”. Parece que o ouço balbuciando em meus ouvidos agora, ele mesmo Verger-Exu, mensageiro de dois mundos.

Também recomendo O candomblé na Bahia, de Roger Bastide; prefaciado por nosso querido e fumado ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Agora tenho algumas coisas a dizer.

O sobrenatural é mais humano na umbanda. De todas as religiões que conheci, foi a única onde os céus tiveram (ou me proporcionaram…) tamanho e reciprocidade. Explico. A comunicação com o além oferece mais do que uma solução para os problemas imediatos e comuns. Temos ao mesmo tempo bom humor — em contraposição à seriedade do espi­ritismo kardecista — atabaques veementes, boa música e uma encenação rica, viva (sobretudo viva) e sensual do outro mundo. As entidades ou os santos correspondentes atropelam as palavras e usam imagens singelas para se comunicar com nosotros, almas igualmente pedestres. Assim como os raios se comunicam com a terra nas tempestades. O curioso é que, embora a comunicação venha de cima,  os orixás falam de baixo para cima (ou de igual para igual, depende do ponto de vista…) e tratam diretamente do problema sem rodeios e pompa. Não há distância.

Nunca, em nenhuma religião, tive um céu de estrelas à minha disposição que coubesse em mim, afinal. O pai-nosso (ou a proposição da reza devidamente adaptada) atingiu, para mim, uma humanidade que dificilmente poderia ser igualada num culto da igreja católica.

Entendi, sem sacrifícios, e com leveza (isso é muito importante) a primeira parte da oração que diz “venha a nós o vosso reino e seja feita a vossa vontade”. Entendi, porque houve aproximação física e semântica, se é que me faço entender. As catarses passam a ser uma questão de foro íntimo: ninguém é obrigado a levantar da cadeira de rodas, pagar mico, dar teste­munhos ou dizer amém. O reino é nosso, a vontade também.

O sobrenatural se dispõe de uma forma despojada, nada impositiva e, principalmente, festejada. É muito mais fácil compreender o Pai, o Filho e o Espírito Santo. É mais fácil entender que é dando que se recebe. A força é proporcional ao deslocamento produzido. Pura física para iniciantes, até as caretas e as distorções nos semblantes dos cavalos (ou indivíduos incorporados) têm os seus bê-a-bás ou sua função didática plenamente jus­tificadas.

O Índio Mata Virgem comanda o terreiro, Tabajara atira com seu arco, Ogum veste seu manto, coroa e espada; um gordinho viado incorpora um curumim e vem me pedir balinha, mando ele telepaticamente pra putaqueopariu e lembro dos filmes do Mazzaropi, tem entidade carrancuda e gente querendo dar o calote do sócio, tem até surfista macumbeiro e patricinha de BMW, cães ladram, mulher vira onça e suga o charutão como se chupasse uma pica invisível. Vou me consultar com mãe Jaciana. Linda, doce, terna, bem-hu­morada, carinhosa e inteligente. Surpreendentemente mais bonita do que a carne incorporada — e toda essa beleza iluminou o sorriso de Andréa, o cavalo. Daí que me apaixonei pela aura da entidade e pelo corpinho do cavalo, ou melhor, da potranca. Que na “vida real” – vejam só – era casada com o Mata Virgem, manda-chuva do terreiro. Baita encrenca.

Não vou revelar aqui o que elas me disseram. Mas posso adiantar que são generosas mulheres, e que há muito esperava encontrar uma coisa, alma, acoplada a outra, carne.

Os orixás que me perdoem, mas me passa pela cabeça abraçar a alma da mãe Jaciana e, no ensejo, meter a mão na bunda da garota cavalgada. Não, os orixás  não precisam me perdoar de coisa alguma, eles participam da suruba, riem de tudo.  A alma me dá a maior bola…

A aproximação entre o céu e a terra é mais humana na umbanda. Percebem? Ou por outra: espero que Exu não se meta a extraviar meu recado, que esta crônica me ajude a conquistar Andréa, a potranca. Que a alma de mãe Jaciana (já conquistada…) me ajude a me aproximar do corpo em questão e que a garota ouça Benito di Paula comigo, goste de pizza de mussarela e dê uns descontos nas minhas viajadas na maionese.

A gente, enfim, precisa conversar, trazer nossas almas para mais perto de nossos corpos, fazer uma filha urgentemente e agradecer a Deus ou Oxalá nosso encontro. Se não for você, Andréa (o que não quer dizer: se não der certo) vou chamar Justine ou a mulher que tiver um ventre branquelo e gordinho para me oferecer depois das batalhas, para celebrar conosco nosso casamento. Axé, amém e seja lá o que Deus quiser.

PS1: Essa crônica é uma adaptação de um texto que estava perdido nos meus arquivos, cujo título era Sururu com Lambreta. Vou preservar o título. Não me perguntem por quê. Beijos e ótimo sábado a todos.

PS2: Se não houvesse repercussão na clamídia, vocês acham que os psicopatas de realengo, de Oslo e da putaqueopariu iriam perder o tempo deles?

Se o rostinho desses merdas  e as “mensagens” que eles propagam não fossem repetidas a exaustão, vocês acham que, mesmo assim, eles perderiam meses planejando atrocidades?

Não existe extrema esquerda, nem extrema direita. Não existe ideologia, nada disso. O que existe, antes de qualquer coisa, é vaidade; é o tesão desses monstros de virar celebridades, de sair do anonimato. Devia ser lei na Noruega e em qualquer lugar do mundo: não divulgar as “mensagens”, muito menos a imagens desses psicopatas assassinos; seria uma forma de condená-los ao limbo de onde vieram.

O espírito de porco, diria: e a liberdade de expressão?  Eu respondo: já ouviu falar do estatuto da criança e do adolescente?  Vale o mesmo princípio. Não se trata de censura. Existe uma lei que diz que expor criança a situação vexatória e constrangedora é crime, e ponto final.  Se no Programa do Raul Gil e nas passarelas da Fashion Week, o estatuto da criança é uma piada, ora, quem falha é o Estado que não interfere, e não a sociedade. Que, em última análise, está amparada pela lei. Basta cumpri-la. Não é o caso desses psicopatas, no caso deles, a sociedade é alvo, está à deriva, completamente desamparada. No caso desses assassinos, o sofrimento das vitimas e dos parentes é prolongado ad infinitum. Vira show.  Senhores legisladores, acordem!


Considerado uma das grandes revelações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário. É autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.

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