Pensata de prêmio Nobel

O socialismo do século XXI

Mario Vargas Llosa
Diferentemente do que ocorre em outros países, onde a imprensa escrita perde leitores e publicidade e, em consequência, empobrece, no Brasil ela parece gozar de ótima saúde. É a impressão que me fica de uma semana intensa passada nesse país, entre o Rio de Janeiro e São Paulo (com direito a uma rápida escapada até o pequeno paraíso de Búzios), durante a qual, fiel à minha vocação de leitor inveterado de jornais, tomei café da manhã todos os dias mergulhado nas abundantes páginas de "O Globo", "O Estado de S.Paulo" e "Folha de S.Paulo", os três principais jornais do país. Excelentes, os três. Bem escritos e otimamente diagramados, com rica informação local e internacional, bons colunistas, pouco sensacionalismo e quase nenhuma fofocagem. A única coisa a lamentar é o pouco espaço dedicado à cultura, algo de que os três padecem — mas já sabemos que isso é, hoje, uma doença mundial.

A imprensa brasileira, escrita e televisiva, reagiu com muita força e condenou de maneira severa o fechamento da Radio Caracas Televisión pelo aprendiz de ditador venezuelano Hugo Chávez. Até o Senado brasileiro fez a mesma coisa, numa atitude que o enobrece, sobretudo considerando os escrúpulos e silêncios covardes de outros parlamentos latino-americanos diante da violação cometida por Chávez com a intenção de acabar com o pluralismo da informação e com a liberdade de expressão na Venezuela. Lamentável, isso sim, é o apoio que Chávez recebeu do presidente Lula, que justificou o fechamento da RCTV, para não despertar a ira do caudilho venezuelano, numa atitude que felizmente recebeu muitas e justas críticas da imprensa brasileira. De resto, não existe o menor risco de que Lula imite Hugo Chávez: embora lhe mande beijinhos escancarados e simule, por vezes, apoiá-lo, sua política vai no sentido exatamente oposto ao da estatização e do coletivismo econômico que o destemperado comandante aplica em seu país, decidido, pelo visto, a produzir na Venezuela uma catástrofe econômica e institucional semelhante à gerada no Peru pelo general Juan Velasco Alvarado, mais um dos mentores e modelos de Hugo Chávez, além de Fidel Castro.

Lula optou por um socialismo moderno, à moda europeia, ou seja, por um socialismo que dele só mantém mesmo o nome, pois apoia o investimento estrangeiro e o mercado, a abertura econômica e a empresa privada. E é por isso que os empresários brasileiros estão satisfeitos com ele: sabem que suas declarações esporádicas de simpatia em relação a Chávez são meras concessões retóricas à esquerda radical com vistas a aplacá-la — sem nenhum sucesso nesse sentido, aliás, pois ela já o ataca por considerá-lo um traidor da revolução. São os paradoxos do tempo em que vivemos: Lula, campeão do capitalismo para uma direita econômica brasileira que vê no ex-sindicalista a melhor defesa contra o “socialismo do século XXI” proposto por Hugo Chávez.

O último número da revista "Veja" — com uma tiragem de um milhão e duzentos mil exemplares por semana — contém uma excelente reportagem investigativa sobre esse “socialismo do século XXI” inventado pelo comandante Hugo Chávez e que ele, a golpe de petrodólares, empenha-se em disseminar por toda a região. O texto, assinado pelo jornalista Duda Teixeira, que averiguou os dados in loco, é preciso. Alguns exemplos ali expostos demonstram a velocidade e a obscenidade com que os colaboradores políticos mais próximos do caudilho-paraquedista enriqueceram no poder. O psiquiatra Jorge Rodríguez, vice-presidente nomeado por Chávez, é dono de um luxuoso hotel na ilha Margarita, principal balneário do país. Adán Chávez, irmão do presidente e ministro da Educação, é dono de uma empresa proprietária de 1.600 caminhões e barcos de pesca, e o senhor Eudomario Carrujo, diretor financeiro da poderosa PDVSA, a companhia petrolífera estatal, possui uma frota particular de quinze automóveis de luxo, entre eles um Hummer H2, que vale cem mil dólares. Este último veículo é o preferido entre os altos funcionários chavistas, segundo admitiram à "Veja" as concessionárias de automóveis de Caracas. Luis Acosta Carlez, governador chavista de Carabobo e um dos principais arautos do “socialismo do século XXI”, perguntou sem o menor escrúpulo:

“Por que nós, revolucionários, não teríamos o direito de ter uma caminhonete Hummer H2?” Com efeito, por que não? Por acaso o presidente Brejnev, da URSS, não tinha como hobby colecionar Mercedes-Benz? Mas não são apenas os carros que estão entre as fraquezas da atual nomenclatura venezuelana. Outra delas é Miami, com seus shopping centers, boates e hotéis de luxo. Nesse quesito, registra o jornalista da "Veja", com humor, Hugo Chávez já conseguiu igualar seu herói epônimo Fidel Castro: como os cubanos, todos os venezuelanos, agora, sonham em fugir para os Estados Unidos. A diferença está em que os altos funcionários chavistas podem, sim, fazê-lo. Mas como não fica bem gastarem seus petrodólares no império contra o qual seu chefe e caudilho se destempera dia e noite, valem-se de pequenos golpes ou malandragens que o relato de "Veja" narra com inúmeros detalhes. Como o de terem dois passaportes — um deles apenas para viagens aos Estados Unidos — ou então arrancar as páginas que contenham carimbos de entrada no inferno imperialista.

O “socialismo do século XXI” consiste, também, em um mercantilismo desavergonhado. Na Venezuela de hoje, ainda é possível ser um capitalista bem-sucedido, desde que se seja, também, um chavista servil. Como a transparência desapareceu completamente com a instalação do regime, as concessões, licitações e contratos estatais são outorgados a dedo, e, às vezes, mediante editais ou concursos manipulados. Prevalece, sempre, o critério político, conforme a velha lei de ferro das ditaduras terceiro-mundistas: “Para os amigos, todos os favores; para os inimigos, a lei.” Como, graças à política chavista, a produção industrial do país despencou, a importação de mercadorias de primeira necessidade constitui, hoje, excelente negócio. No entanto, para obter os dólares necessários, o importador precisa manter ótimas relações com o governo, já que, visando exatamente isso, estabeleceu-se o controle do câmbio, tradicional instrumento de coerção e de suborno adotado pelos governos “nacionalistas” latino-americanos.

Apesar da pavorosa realidade de corrupção, favorecimentos pessoais, demagogia e autoritarismo que relata, a reportagem da "Veja" não é totalmente pessimista. Por outro lado, confirma algo de que eu já suspeitava depois de ver a maneira corajosa com que a oposição venezuelana se mobilizou contra o fechamento da Radio Caracas Televisión: que, dessa vez, o caudilho venezuelano deu um passo em falso e o povo venezuelano começou a abrir os olhos para o monstro que criou ao depositar sua confiança e seus votos em um demagogo que pode levar o país à ruína e a uma ditadura totalitária. As pesquisas feitas pelo Instituto Hinterlaces, de Caracas, e publicadas pela "Veja", falam por si: 78% dos venezuelanos desaprovam o antiamericanismo de Chávez; 85% condenam o financiamento político a outros países; 86% não querem um socialismo à cubana; e 86% são contra o confisco de propriedades privadas. Mais: 40% dos venezuelanos que votaram em Chávez nas eleições de dezembro passado declaram que hoje votariam contra ele.

Ainda há esperança, portanto, para a Venezuela. E podemos garantir, sem medo de errar, que o “socialismo do século XXI”, criatura típica do espadachim rasteiro, logo se esvaziará, como mais um engodo criado por essas ditaduras grotescas de que está repleta a história latino-americana.

O que levou milhões de venezuelanos a votarem a favor de Hugo Chávez em diferentes ocasiões nos últimos anos? A corrupção que corroía a democracia e a incapacidade desta última para diminuir a pobreza e as vergonhosas desigualdades sociais. Mas, em vez de optar por uma alternativa libertadora, enfiaram uma corda no pescoço apoiando uma política que, em cinco anos, triplicou a criminalidade no país, fez a inflação disparar, esbanja recursos públicos financiando o extremismo marxista em todo o continente e mantém vivo o semicadáver cubano. Mas, sobretudo, um regime que acrescentou novas e mais perniciosas formas de corrupção às muitas que o país já trazia de antes. Neste momento, o presidente Chávez sabe que sua impopularidade cresce a cada dia. Por isso, apressa-se em fechar os poucos espaços que ainda restam, na Venezuela, para a denúncia de seus desmandos. O que aconteceu com a RCTV é apenas o começo de um processo que, como em Cuba, acabará por colocar todos os meios de comunicação venezuelanos sob o controle do Estado, à exceção, talvez, de duas ou três empresas supostamente independentes — parece ser esse, por exemplo, o caso da Venevisión, a julgar por seu abominável silêncio diante do fechamento da RCTV —, para manter a farsa do pluralismo na informação. Mas, a julgar pela valente reação que essa medida provocou no meio estudantil e popular que antes apoiava o regime, esse episódio poderia ser, também, o início do fim da revolução chavista.

São Paulo, 14 de junho de 2007

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