Coluna do Mirisola

Valdemiro é homem de Deus

"Se Michelangelo Buonarroti pintou a capela Sistina e a Igreja Católica bancou o Renascimento, por que o apóstolo Valdemiro não pode pregar num galpão do Brás? Só por que é negão, feio, pegajoso e brega?"

Marcelo Mirisola*
Se Bento XVI é homem de Deus, por que o apóstolo Valdemiro Santiago, da Igreja Mundial do Poder de Deus, não pode ser? Se os lojistas faturam no Natal e os hotéis de Aparecida do Norte ficam lotados nos feriados católicos, por que o apóstolo Valdemiro não pode glorificar seus carnezinhos em São Roque? Se o papa é o santo padre, por que Valdemiro não pode ser apóstolo e santo também? Se os cardeais de Bento XVI são colunistas dos principais jornais do país e os católicos têm a Rede Vida, e agências de turismo que também são financeiras, por que o apóstolo Valdemiro não pode alugar um canal de televisão?

Se Michelangelo Buonarroti pintou a capela Sistina e a Igreja Católica bancou o Renascimento, por que o apóstolo Valdemiro não pode pregar num galpão do Brás? Só por que é negão, feio, pegajoso e brega?

Se Bento XVI, que herdou o trono e a covardia de Pedro, e que, além de ser pegajoso, enseja uma obscenidade sadomasoquista e fala dez idiomas... enfim, se o santo padre é iluminado pelo espírito santo, por que o apóstolo Valdemiro não pode falar a língua dos anjos – e pregar o mesmo evangelho – no seu português silva e estropiado?

Se o governo patrocina a homeopatia em hospitais públicos, por que o apóstolo Valdemiro não pode curar câncer na sua igreja? Se o padre Marcelo tem nojinho de banheiro publico, só faz “pipi” no camarim e esteriliza as mãos depois de abençoar suas ovelhas, o problema é dele. Isso, no entanto, não impede que o apóstolo Valdemiro Santiago transpire debaixo do sovaco e nem tampouco o impede de ser um homem de Deus.

Se a palavra é de Deus ou do diabo, o problema é de quem a ouve. É para isso, afinal, que o pregador está lá: para provar que está falando a verdade, seja qual for.

E o que a Igreja Católica tem a falar sobre... pedofilia?

Alguém lembra de Richard Williamson, aquele bispo que disse que não acreditava no holocausto?

Williamson – só pra refrescar a memória do leitor – já havia sido excomungado. O papa Bento XVI revogou a excomunhão. Não obstante, devido à pressão que sofreu, resolveu dar satisfações a seu rebanho. Ficou pior a emenda que o soneto. Como assim, revogou a excomunhão? Como é que um cara que foi mandado pros quintos dos infernos por um papa que já morreu e que, em tese, segundo os preceitos da própria igreja é “infalível”... pode, de repente, voltar do limbo (ah, desculpem, o limbo não existe mais...) falando um monte de bobagens em nome de uma religião da qual – até ano passado – eu fazia parte?

E o pior. Como é alguém pode levar esses pedófilos & nazistas a sério e afirmar que o apóstolo Valdemiro Santiago não é um homem de Deus? Se Bento XVI é homem de Deus, o Valdemiro, eu e a bispa Sônia (ah, não a bispa Sônia não...) também somos, cazzo!

Se você acredita nas boas intenções da Xuxa e liga pro Criança Esperança, por que não pode adquirir o carnezinho do apóstolo Valdemiro?

Uma vez fiz um exercício de imaginação aqui no Congresso em Foco. Lembram da seita que venerava pelos grisalhos de sovaco? Os clérigos dessa seita acreditavam que a pedofilia seria o caminho para se chegar aos tesouros dos céus. A vida das criancinhas – para eles – estava acima de tudo. A doutrina da Igreja Universal do Sovaco Grisalho condenava o aborto e a zoofilia, e fazia sérias restrições com relação a macumbeiros e tinturas de cabelo. Ao alvorecer, as criancinhas e os sacerdotes da I.U.S.G santificavam o pleonasmo. Todos nus. Também acreditavam num ser iluminado que havia sido parido do ventre de um tamanduá.

Totonho Pé de Pato, o grande arquimandrita da Igreja Universal do Sovaco Grisalho, também conhecido como Máximos IV, saiu – em termos – das páginas de um livro do Cony e estabeleceu sua primeira igreja num condomínio fechado no Vale do Alcantilado, onde mora atualmente. Na garagem de sua mansão, ele guardava duas BMWs, uma réplica da Demoiselle IV e uma coleção de besouros dispostos em posições comprometedoras. O grande arquimandrita também gostava de pescar e, às vezes, rezava missas em sânscrito e de trás para frente. Preferido dos cantores sertanejos, sua santidade dominava a psicocinese, a precognição, a telepatia e também – depois de passar 14 anos no Tibete – aprendeu a cultivar Tulpas, uma forma de pensamento materializado. Ninguém sabia se ele era ele mesmo ou uma Tulpa longa, grisalha e crespa que assumia um comportamento cada vez mais independente e excêntrico. O melhor – diziam – era não contrariar o pentelho.

Totonho Pé de Pato não escovava os dentes às terças, quintas-feiras e sábados, criava paradoxos e serpentes no seu jardim de orquídeas carnívoras (uii), e tinha uma língua afiada e bipartida. Por baixo da batina, o grande arquimandrita vestia uma cinta-liga amparada por ferrolhos que lhe perfuravam as coxas rosadas. Vivia uma ereção ininterrupta que – segundo depoimento dos fiéis – já durava oito anos. Alguns sacerdotes dessa excêntrica igreja faziam votos de pobreza e boqueteavam o mestre todo final de tarde, outros colecionavam obras de arte. A Igreja Universal do Sovaco Grisalho contava milhares de seguidores no mundo inteiro, menos na misteriosa Clevelândia, uma cidade de gente honrada e trabalhadora que se localiza no centro-sul do Paraná – o grande arquimandrita sofria (e continua sofrendo muito) por conta disso. Aborto não se discutia na I.U.S.G, se excomungava – nisso, eles (que adoravam criancinhas...) coincidiam fervorosamente com a doutrina da Igreja Católica.

Pois bem. Se um arcebispo da Igreja Católica Apostólica Romana pode excomungar um médico que fez aborto e salvou a vida de uma menina de nove anos que foi estuprada pelo padrasto, qualquer um pode qualquer coisa em nome de Deus e do Sovaco Grisalho. Capisce? Como é que alguém que acredita num papa que trouxe de volta do inferno um bispo que nega o holocausto pode não acreditar nos milagres do apóstolo Valdemiro Santiago, da Igreja Mundial do Poder de Deus?

Se o padre Marcelo toma remédios para frear a queda de cabelos, e garante que não faz parte daqueles 41% de religiosos que tiveram casos com mulheres, a que conclusão podemos chegar antes de acusar o apóstolo Valdemiro de ser ladrão?

Ora, que ambos pregam a palavra de Deus, com a diferença que o apóstolo Valdemiro é casado com a bispa Franciléia, e o padre Marcelo acha importante um sacerdote estar sempre malhado e se vestir bem. Mas vamos fazer umas contas. Se padre Marcelo não faz parte dos 41% de sacerdotes garanhões, então ele se inclui na outra parcela de 59% de religiosos que tiveram casos com... homens e crianças? Matemática é coisa do diabo e esse raciocínio é uma piada – bom avisar antes que viadinho burro me acuse de ser homofóbico.

Prosseguindo. Uma vez que o apóstolo Valdemiro diz que o dízimo é a prova da existência de Deus e o padre Marcelo assume sua vaidade, ora, uma vez que ambos são homens de Deus, ninguém pode acusar ninguém de ser ladrão nem de ser viado, tá certo? E o padre Marcelo Rossi, sob esse prisma colorido, é mais enfático até: ele pensa que “homossexualismo não é coisa de Deus”. Claro que não, é coisa de viado mesmo.

Padre Marcelo rasga as cartas de amor que recebe. De homens e mulheres, diz que não é santo, mas que quer viver na santidade. Imagino que rasgue as cartas de tesão. Já o apóstolo Valdemiro Santiago cura cancerosos e aidéticos no altar de sua igreja lá no Brás, e não é só. Ele faz cego enxergar e paralítico dar cambalhotas, ao vivo e a cores, todos os dias na televisão e na internet. Eu penso que ele também tem direito de viver na santidade, vocês não acham?

Todos temos esse direito, aliás. E, antes de qualquer coisa, quero dizer que não inventei uma linha sequer desta crônica. Foi tudo publicado na Folha de S. Paulo. Dou todos os créditos a Mônica Bergamo, que entrevistou padre Marcelo no dia 16 de maio de 2004. E o programa do apóstolo Valdemiro Santiago está todos os dias no ar, não só na CNT, mas no canal 21 e na Rede TV também. Quero dizer que rezo o Pai-Nosso toda santa manhã antes do holocausto de cada dia. Só me arrependo de uma coisa: de não ter conhecido o apóstolo Valdemiro antes de penhorar minha alma para o Deus sádico que Saramago está tendo que engolir a contragosto.

Sim, eu me converti ao evangelho e meu estilo apenas melhorou. O que, convenhamos, é um milagre. As escrituras dizem que ainda dá tempo. E não dói nada, garanto. Para um cara como eu, que gosta de programas populares, efeitos especiais toscos e baixarias, até que foi fácil e divertido. Vocês, ímpios, ainda têm uma chance antes de Jesus Cristo voltar sorrateiro feito um ladrão, depois vai ser tarde demais e o filho de Deus vai passar o rodo impiedosamente – leiam a Bíblia. Ou vocês se convertem agora, que a misericórdia dos céus está à disposição, ou nunca mais.

Convertei-vos, infiéis! Porque se o apóstolo Valdemiro não for um estelionatário, se eu não fiquei maluco, se Bento XVI não for a encarnação do capeta e se o padre Marcelo não for uma bicha louca, uma coisa vos digo: estamos todos fodidos e mal pagos – para toda a eternidade.

* Considerado uma das grandes revelações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário. É autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.

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