Opinião

Doria faz política com 'p' minúsculo

Demétrio Magnoli
João Doria esmera-se na arte de emplacar manchetes. Fantasia-se de gari, junto com seus secretários, e varre uma praça; proíbe o uso de gravata no secretariado; promete multar auxiliares retardatários (a condição para ser secretário municipal em São Paulo é suportar ordens arbitrárias, destinadas a gerar efeitos publicitários). É política em ritmo frenético, mas com "p" minúsculo.

Na campanha, Doria vestiu o figurino do gestor, surfando a onda da rejeição aos políticos. Gestão é, obviamente, uma necessidade. Precisamos de serviços eficientemente administrados, bueiros desentupidos, conservação do asfalto, limpeza dos locais públicos.

Depois de Haddad, com sua incompetência militante, eloquente, o cumprimento de deveres básicos adquiriu uma aura de excepcionalidade. Mas o elogio desmedido da gestão veicula uma mensagem política: o prefeito está dizendo que seu mandato exclui a ideia de mudança.

A longa história dos termos "gerir" e "administrar" preencheu-os de significados militares (comandar, coordenar e controlar) ou empresariais (manipular a alocação de fatores de produção). Nos dois casos, trata-se de reproduzir aquilo que já existe, não de provocar rupturas estruturais. O político que se declara gestor é um gerente da velha ordem.

Adicionalmente, é um político de inclinações autoritárias, pois a missão que se atribui não requer o exercício da persuasão mas, apenas, a transmissão de ordens e a distribuição de tarefas. São Paulo, porém, precisa de algo mais.

Barracas de lona, dormitórios improvisados com caixotes, sofás esburacados, pilhas de lixo. Nas praças, sob os viadutos, a paisagem ubíqua das invasões assinala um limite.

A pulsão segregadora da metrópole, tão antiga quanto ela mesma, atingiu seu ponto extremo, tornando-se disfuncional. A periferização da pobreza, nas suas modalidades legais ou ilegais, esgotou suas possibilidades. O MTST, que se amansa na margem esquerda do córrego do lulismo, pode viver (e prosperar) com um Minha Casa Minha Vida ou guetos clientelistas de "habitação social". A cidade, ao contrário, necessita uma reinvenção.

Um século atrás, Arthur Pigou, o sucessor de Alfred Marshall em Cambridge, apontou instâncias de ineficiência da economia de mercado e identificou motivos para a intervenção do poder público, lições hoje esquecidas pelos fanáticos ultraliberais. As cidades ilustram, exemplarmente, tais ineficiências.

Nelas, a propriedade da terra confere acesso a rendas derivadas, exclusivamente, da localização, e o uso desregulado dos terrenos impõe custos externos que recaem sobre a coletividade. Deixada ao sabor do mercado, a cidade tende à expansão horizontal, à suburbanização e à produção de sucessivos anéis periféricos, enquanto submete as áreas centrais à degradação. São Paulo move-se por essas linhas perversas desde os tempos de Pigou, apesar (ou por causa?) de seus planos diretores.

A depressão econômica em curso evidencia que se fecharam, em definitivo, as válvulas de escape.

Haddad emergiu, há quatro anos, sinalizando uma reinvenção. Seu Arco Tietê indicava o rumo para macro-operações de renovação do centro expandido, com a valorização de "ruínas urbanas" constituídas por galpões desativados e edificações diversas mais ou menos abandonadas.

A ideia de projetos imobiliários de uso misto, integrando comércio, serviços e habitações para diferentes faixas de renda, estava vagamente inscrita nas propostas originais. Logo, contudo, o impulso da reforma urbana esmoreceu, substituído por ações pontuais incoerentes, cracolândias estatizadas e ciclovias aleatórias.

Doria teria um ponto de partida, se optasse pela política com maiúsculas.

Tudo indica que escolherá o caminho da "gestão": a política com minúsculas. Daqui a quatro anos, precisaremos ainda mais de garis -e de milícias de vigilantes de bairro. 

Original aqui

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