Opinião

Vícios solitários

João Pereira Coutinho
Aconteceu na Flip: o escritor Bernardo Carvalho conversou com Benjamin Moser, o excelente biógrafo de Clarice Lispector, e deixou uma mensagem de amor para os seus leitores. Disse ele: "Não me interessa se o leitor lê ou não lê". E acrescentou, com extrema elegância: "Eu quero que se foda". Para Bernardo Carvalho, o importante é "fazer a minha literatura".

Li as declarações do escritor com interesse triplo.

Para começar, eu sou um leitor da sua obra –desde "Nove Noites", um romance assaz estimável. E, se é verdade que eu não esperava um agradecimento pelo fato heroico de o ler, ter um autor que me manda "foder" só seria perdoável se Bernardo Carvalho estivesse preocupado com a minha vida íntima.

Mas o espanto continua. Um espanto respeitoso, sempre respeitoso: segundo o próprio, tudo que interessa é apenas "fazer a sua literatura", indiferente ao ruído e ao interesse das massas ignaras.

Longe de mim criticar o gesto: nunca escondi o meu elitismo cultural, que sempre foi indigesto para certos "filistinos". Mas um solipsismo tão radical em matéria criativa eu só tinha encontrado na minha prima de 15 anos, que também gosta de "escrever os seus poemas" sem jamais pensar em partilhá-los com a plebe.

Se Bernardo Carvalho escreve apenas para o umbigo, como explicar o mistério da publicação comercial? Não seria mais coerente, existencialmente falando, reservar o produto do vício solitário para a gaveta?

Mas aquilo que me interessou verdadeiramente nas declarações de Bernardo Carvalho foi a relação que ele estabeleceu entre "alta cultura" e "demanda popular". A "alta cultura" não escreve para o público, muito menos para satisfazer os gostos desse público?

O raciocínio é bizarro porque a história nem sempre autoriza esse clichê. Estamos em 2016. E, para ficarmos nos dois centenários célebres do ano, que podemos dizer de Miguel de Cervantes ou William Shakespeare?

Sim, são dois nomes incontornáveis do "cânone". E, de forma ainda mais perturbante, foram dois mercenários que perseguiram as graças do público acima de qualquer ética ou estética.

O sucesso de "Dom Quixote" –sucesso comercial, entenda-se– foi perseguido por Cervantes desde o momento em que ele regressou à Espanha, depois de uma vida militar (contra os turcos em Lepanto) e até de uma experiência como escravo (quando foi capturado na costa norte-africana).

O caso de Shakespeare é ainda mais intrigante: na história da literatura, não encontro par para o bardo. Mas será preciso lembrar que o nome cimeiro da "alta cultura" ocidental era o mais popular escritor da Inglaterra isabelina –uma concessão comercial que tanto indignava a "intelligentsia" da época?

Naturalmente é possível argumentar o contrário: o "gosto popular" foi suficientemente ignaro para não reconhecer Allan Poe, Melville e tantos outros.

Mas as cegueiras do povo não são maiores nem menores do que a cegueira das "elites". A carta do editor Marc Humblot a recusar o "A la recherche..." de Proust é uma das maiores piadas da história editorial francesa. O mesmo vale para a atitude de T.S. Eliot na Faber & Faber quando jogou no lixo "A Revolução dos Bichos", de Orwell.

Existe uma moral nessa história? Existe: "alta cultura" e "gosto popular" não são conceitos irremediavelmente opostos. Se fossem, o sucesso de Tchékhov com os seus contos para os jornais de São Petersburgo jamais teria permitido a justíssima consagração do autor entre os grandes escritores russos.

Fato: a qualidade de uma obra não depende do seu sucesso comercial. Novo fato: a qualidade de uma obra não depende do seu sucesso crítico (as páginas que se escreveram em França sobre a "tribo" dos impressionistas são o melhor exemplo dessa verdade).

Mas também são raros os grandes autores que recusavam o "imperativo da comunicabilidade" –e, consequentemente, da publicação– com absoluto puritanismo. Há exceções?

Existem sempre: o essencial de Fernando Pessoa ficou para a posteridade; o essencial de Franz Kafka também. Mas eu só respeito um escritor que despreza o leitor quando ele está disposto a escrever para uma arca ou, mais radicalmente ainda, a destruir a sua obra inédita.

Se Bernardo Carvalho acredita que faz parte desse time, então talvez seja hora de passar das palavras aos atos. 

Original aqui

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