Opinião
A perigosa nostalgia dos idosos
Contardo Calligaris
Imagine dois projetos de lei. Um propõe que cada um adquira seu jazigo em dez anos sem juros (ou seja, com juros financiados pelo governo). O outro propõe que cada um adquira seu primeiro carro pagando em dez anos, também sem juros (ou seja, com juros financiados pelo governo).
São tempos de vacas magras. Não há dinheiro para os dois projetos. Um referendo deve decidir qual dos dois será adotado. É possível imaginar que os jovens preferirão o projeto do carro, e os idosos, o do jazigo.
Um plebiscito sobre a reforma da Previdência daria uma oposição análoga. Os idosos pensarão em garantir seus "direitos", ou seja, a melhor aposentadoria possível, e, se isso implica que cada jovem pague a metade do que ele ganha em INSS ou que o Estado quebre em 20 anos, pois bem, dane-se.
E os jovens? Bom, fale com um jovem de 18 anos sobre a aposentadoria dele, tente interessá-lo: ele é capaz de responder que, de qualquer forma, ele não pretende viver tanto tempo assim.
O voto do "Brexit", que decidiu que o Reino Unido sairá da União Europeia, manifestou um duplo conflito (que não é só inglês). O primeiro é ao redor da imigração: enfrentam-se os que defendem os valores do território e os cosmopolitas das grandes cidades –sobre essa oposição voltarei na semana que vem. O outro é o conflito entre jovens e idosos.
Setenta e cinco por cento dos jovens entre 18 e 24 anos votaram para continuar na União Europeia. Quase a mesma porcentagem de aposentados, acima de 65 anos, votou para sair da Europa. Só para confirmar: na Escócia, onde se vota a partir dos 16 anos (e não dos 18), o "Brexit" perdeu feio.
O atraso no desenvolvimento do córtex pré-frontal dos adolescentes é a causa provável de sua impulsividade, sua dificuldade em ponderar as consequências de seus atos etc. Esse traço da juventude é socialmente útil: num exército, os soldados devem ser capazes de se arriscar sem pensar duas vezes.
A prudência trazida pela idade é também útil: no mesmo exército, os oficiais superiores não devem arriscar levianamente a vida de seus homens. Ou seja, um exército só de jovens ou só de idosos seria uma catástrofe.
Agora, uma observação, que me sinto livre para expressar por fazer parte dos idosos. À vista da utilidade social de jovens e idosos, é curioso que todos achemos normal que exista uma idade mínima para votar, mas ninguém pense seriamente na possibilidade de uma idade máxima para votar, sobretudo nos casos em que o voto tem consequências radicais para o futuro da comunidade –ou seja, muito mais para os jovens do que para os aposentados.
Não estou pensando na senilidade e na demência (para isso existe a interdição), mas em traços frequentes em nós, idosos, que talvez nos tornem eleitores perigosos para todos. Dois em particular:
1) Uma avareza mesquinha (e generalizada –não só financeira), que consiste em tentar preservar e conservar qualquer coisa, como metáfora da preservação (impossível) da nossa vida que se vai;
2) Uma idealização fantasiosa de passados que nunca existiram. Os idosos parecem sempre evocar o "tempo feliz" de sua infância, quando os pais eram severos e por isso educavam bem, quando dava para brincar na rua e a escola pública era muito boa. Mas, se a escola era tão boa, por que o cara é ignorante? E, se os pais eram grandes pedagogos, por que ele é bruto e mal-educado?
Cuidado: quase sempre, nós idosos nos servimos da saudade para "viver", numa lembrança inventada, algo que, de fato, não conhecemos –e agora é tarde. Nossa vida não foi o que queríamos, e ela não vai mudar mais, no entanto "tivemos"(na lembrança) uma infância de conto de fadas, não é?
Também nos servimos da saudade para amenizar nossa inveja (filhos e netos vão viver mais tempo, mas não terão uma infância incrível, como a nossa) e para mendigar algumas migalhas da inveja dos jovens. Se não tivéssemos vivido na Idade de Ouro, quem nos invejaria, sabendo que nossa morte é próxima e o corpo já falha?
Os mais saudosos, aliás, são os idosos das classes menos favorecidas; eles, literalmente, têm saudade do que nunca tiveram. Domingo, nas entrevistas da BBC, gritavam: "Vamos pegar nosso país de volta!". Como assim, "de volta"? Meu amigo, "seu" país nunca foi seu, nem de longe.
"Nós não ficamos mais sábios com a idade, nem sempre os velhos sabem o que é certo" (Jó 32:9).
Original aqui
Contardo Calligaris
Imagine dois projetos de lei. Um propõe que cada um adquira seu jazigo em dez anos sem juros (ou seja, com juros financiados pelo governo). O outro propõe que cada um adquira seu primeiro carro pagando em dez anos, também sem juros (ou seja, com juros financiados pelo governo).
São tempos de vacas magras. Não há dinheiro para os dois projetos. Um referendo deve decidir qual dos dois será adotado. É possível imaginar que os jovens preferirão o projeto do carro, e os idosos, o do jazigo.
Um plebiscito sobre a reforma da Previdência daria uma oposição análoga. Os idosos pensarão em garantir seus "direitos", ou seja, a melhor aposentadoria possível, e, se isso implica que cada jovem pague a metade do que ele ganha em INSS ou que o Estado quebre em 20 anos, pois bem, dane-se.
E os jovens? Bom, fale com um jovem de 18 anos sobre a aposentadoria dele, tente interessá-lo: ele é capaz de responder que, de qualquer forma, ele não pretende viver tanto tempo assim.
O voto do "Brexit", que decidiu que o Reino Unido sairá da União Europeia, manifestou um duplo conflito (que não é só inglês). O primeiro é ao redor da imigração: enfrentam-se os que defendem os valores do território e os cosmopolitas das grandes cidades –sobre essa oposição voltarei na semana que vem. O outro é o conflito entre jovens e idosos.
Setenta e cinco por cento dos jovens entre 18 e 24 anos votaram para continuar na União Europeia. Quase a mesma porcentagem de aposentados, acima de 65 anos, votou para sair da Europa. Só para confirmar: na Escócia, onde se vota a partir dos 16 anos (e não dos 18), o "Brexit" perdeu feio.
O atraso no desenvolvimento do córtex pré-frontal dos adolescentes é a causa provável de sua impulsividade, sua dificuldade em ponderar as consequências de seus atos etc. Esse traço da juventude é socialmente útil: num exército, os soldados devem ser capazes de se arriscar sem pensar duas vezes.
A prudência trazida pela idade é também útil: no mesmo exército, os oficiais superiores não devem arriscar levianamente a vida de seus homens. Ou seja, um exército só de jovens ou só de idosos seria uma catástrofe.
Agora, uma observação, que me sinto livre para expressar por fazer parte dos idosos. À vista da utilidade social de jovens e idosos, é curioso que todos achemos normal que exista uma idade mínima para votar, mas ninguém pense seriamente na possibilidade de uma idade máxima para votar, sobretudo nos casos em que o voto tem consequências radicais para o futuro da comunidade –ou seja, muito mais para os jovens do que para os aposentados.
Não estou pensando na senilidade e na demência (para isso existe a interdição), mas em traços frequentes em nós, idosos, que talvez nos tornem eleitores perigosos para todos. Dois em particular:
1) Uma avareza mesquinha (e generalizada –não só financeira), que consiste em tentar preservar e conservar qualquer coisa, como metáfora da preservação (impossível) da nossa vida que se vai;
2) Uma idealização fantasiosa de passados que nunca existiram. Os idosos parecem sempre evocar o "tempo feliz" de sua infância, quando os pais eram severos e por isso educavam bem, quando dava para brincar na rua e a escola pública era muito boa. Mas, se a escola era tão boa, por que o cara é ignorante? E, se os pais eram grandes pedagogos, por que ele é bruto e mal-educado?
Cuidado: quase sempre, nós idosos nos servimos da saudade para "viver", numa lembrança inventada, algo que, de fato, não conhecemos –e agora é tarde. Nossa vida não foi o que queríamos, e ela não vai mudar mais, no entanto "tivemos"(na lembrança) uma infância de conto de fadas, não é?
Também nos servimos da saudade para amenizar nossa inveja (filhos e netos vão viver mais tempo, mas não terão uma infância incrível, como a nossa) e para mendigar algumas migalhas da inveja dos jovens. Se não tivéssemos vivido na Idade de Ouro, quem nos invejaria, sabendo que nossa morte é próxima e o corpo já falha?
Os mais saudosos, aliás, são os idosos das classes menos favorecidas; eles, literalmente, têm saudade do que nunca tiveram. Domingo, nas entrevistas da BBC, gritavam: "Vamos pegar nosso país de volta!". Como assim, "de volta"? Meu amigo, "seu" país nunca foi seu, nem de longe.
"Nós não ficamos mais sábios com a idade, nem sempre os velhos sabem o que é certo" (Jó 32:9).
Original aqui
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