Opinião

Coletores-caçadores

Contardo Calligaris
Nas manifestações de domingo passado, a insatisfação da rua não tratou nenhum político com simpatia. Uma exceção foi em Brasília, onde o deputado Jair Bolsonaro foi bem recebido pelos manifestantes.

Isso não significa que os manifestantes contra a corrupção, Dilma, o governo, o PT, Eduardo Cunha e afins sejam nostálgicos da ditadura militar ou misóginos, homofóbicos, contrários ao aborto etc.

Hoje, o apelo a alguém que encarna a pior repressão não me estranha. A corrupção é mais endêmica do que a dengue e o zika; portanto, é normal que haja um bom números de corruptos, corruptores, sonegadores, encostados etc. entre os que desejam que a corrupção e o encosto não sejam mais nosso sistema de governo.

Agora, quem precisa lutar contra suas próprias piores tendências invoca remédios que possam inibir sua própria liberdade. Ou seja, quem invoca a ditadura militar contra a corrupção é como um viciado que pede para ser internado para lutar contra seu vício.

Falando de Bolsonaro, uma amiga me diz que ele é "primitivo". Discordo. E aproveito para cumprir minha promessa da semana passada e falar sobre os coletores-caçadores, que povoaram a terra de 5 milhões a 200 mil anos atrás (e ainda não sumiriam inteiramente). Eles são, por sua duração, nossos antepassados mais importantes.

Parêntese: como notou o leitor João Guizzo, eu os chamo de caçadores-colheidores –é por antipatia pela coleta, que me faz sempre pensar no dízimo.

Então, como imaginamos que fossem os coletores-caçadores?

Aqui, um pouco de desconfiança. Em geral, tendemos a interpretar o passado (sobretudo a Pré-História) de maneira a justificar nossas ideias sobre o que seria "natural". Por exemplo, você quer manter as mulheres no "quarto de Jack"? Tudo bem, vamos dizer que, na Pré-História, elas ficavam sempre nas cavernas"¦

Justamente, os anos 1960, a época em que a propaganda do pós-guerra tentava confinar o desejo das mulheres entre a cozinha e a cama nupcial, foram também o momento em que se vulgarizou o mito dos coletores-caçadores.

Esse mito contava que, durante milhões de anos, a gente tinha vivido em famílias nucleares –os homens saindo à procura de proteína (carne de caça), e as mulheres (em estado de dependência de seus machos) catando salada e frutas perto da porta da caverna, onde cozinhavam e cuidavam das crianças.

Os nazistas sonhavam com o Reich de mil anos. Como escreveu Rebecca Solnit num ensaio antológico na "Harper's" de junho de 2015 (disponível em migre.me/tedMt), os conservadores dos anos 1960 fizeram melhor: eles inventaram o subúrbio norte-americano de 5 milhões de anos. As mulheres estão em casa, fiéis a seus homens (por amor ou por dependência), e os homens caçam pelos vastos espaços e voltam cobertos de glória e de carne sem a qual todos morreriam de fome –não é?

Se assim fosse, Bolsonaro seria primitivo. Mas parece mesmo que não é assim, e assim nunca foi.

Já nos anos 1960, uma antropóloga, Elizabeth Marshall Thomas, foi viver numa comunidade de coletores-caçadores, no Kalahari. Ela descobriu coisas que poderiam ter sido óbvias desde sempre, se o machismo do pós-guerra não precisasse de um protótipo na Pré-História.

Por exemplo, ela descobriu que, nas sociedades de coletores-caçadores, as mulheres e as crianças eram tão relevantes quanto os homens –se não mais, porque a dita caça lenta (lesmas, lagartos etc.) ao redor da caverna era mais importante para a alimentação de todos do que a captura de um animal de grande porte pelos homens.

Talvez por isso, aliás, homens e mulheres tivessem o mesmo peso político na vida da tribo. A sociedade era igualitária (acumular bens era uma idiotice para quem se deslocava com frequência). A família nuclear, se existia, era pouco relevante: os filhos eram criados coletivamente, e os caçadores não caçavam como provedores para sua família, mas sempre para a comunidade.

Enfim, a tribo, por sorte, não dependia deles. Imagine um bando de homens correndo na planície à procura de uma presa. Eles têm sorte e, juntos, matam uma espécie de búfalo. Como levá-lo de volta? Como preservar a carne? Eles convocam a comunidade, que vem toda para uma tremenda festa, a qual não vai alimentar ninguém, e cujo efeito mais provável vai ser uma tremenda diarreia. 

Original aqui

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