Opinião

Um diálogo nada fácil

POR ZUENIR VENTURA 
Acordei segunda-feira com o alívio de quem saiu de um bombardeio ou de uma intoxicação de palavras. No balanço das últimas eleições, faltou dizer que, além de ter sido uma das disputas mais aguerridas e virulentas, e de resultado mais apertado, foi também a que mais subverteu a semântica, promovendo uma revolução dos significados. Os termos ganharam novos sentidos, às vezes opostos ao original, conforme eram usados por um ou outro candidato. “Desconstruir”, por exemplo, como observou Ancelmo Gois, vai finalmente “voltar a ser usado na construção civil”, de onde nunca deveria ter saído, pois ganhou a conotação de demolir, desmoralizar, desqualificar não uma obra, mas a reputação do adversário. “Mudança”, outra das mais empregadas nos debates do segundo turno, tornou-se um lugar-comum dos dois oponentes, que quando não tinham o que oferecer de concreto, prometiam mudar — mudar conservando ou conservar mudando, mudar às vezes só de cadeira

O pior é que o hábito contaminou o dia, ou melhor, a hora seguinte. No discurso da vitória, a insistente proposta de “união” e “diálogo” apresentou-se contraditória. A oposição e o candidato derrotado, que seriam os interlocutores naturais dessa inflexão pacifista, nem foram citados. Aliás, muito deselegante por parte da vencedora desobedecer a praxe civilizada e negar-se a pronunciar o nome do perdedor, do qual já tinha partido um gesto de distensão ao telefonar para ela cumprimentando pela vitória. A oradora pode alegar que o discurso fora escrito não por ela, que apenas leu. Mas poderia acrescentar as dez letras de Aécio Neves que não prejudicaria o texto, ao contrário, valorizaria. Na democracia, diálogo é conversa entre diferentes, de preferência entre opostos. Entre iguais é monólogo a dois. Assim, o não-dito talvez tenha sido mais revelador do que o dito na mensagem presidencial. Outro paradoxo foi a afirmação “não acredito que essas eleições tenham dividido o país”. Por que então propor a união?

Já que a presidente está falando tanto em mudança, cabe perguntar se ela mesma está disposta a mudar de temperamento e de estilo de governar. No segundo turno, houve até esforço para se apresentar mais simpática e menos autoritária, sem conseguir esconder de todo a impaciência e a irritabilidade que seus auxiliares e ministros conhecem bem. Dizem que, ao contrário de Lula, ela é de guardar, de não esquecer com facilidade o que considera ofensa. E nessa eleição o pote ficou até aqui de mágoa.

Como se sabe, a “Joana d’Arc da subversão”, como a chamavam seus algozes, não cedeu ou transigiu nem sob tortura. Isso, que é uma rara qualidade humana, pode ser em política, arte da negociação, uma dificuldade para seu projeto de união e de diálogo num cenário de forte oposição.

Original aqui

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