Boxe

Nobre arte, outra história...

Sidney Borges (em homenagem a Bert Sugar)
A origem das lutas com os punhos é tão antiga quanto os punhos, isto é, o homem sempre usou as mãos fechadas para resolver pendências. Na Grécia a coisa tomou rumo organizado, as lutas tornaram-se esporte e a Olimpíada de 688 antes de Cristo surge como a primeira competição de pugilismo da história. Bem, comecei a escrever com a intenção de contar uma história de boxe, não contar a história do boxe, mas já que esbarrei nessa seara acrescento que há referências de lutas com luvas entre os sumérios, três mil anos antes de Cristo. Além deles, assírios, babilônios, hititas e egípcios também apreciavam a nobre arte, denominação creditada aos britânicos.

Pode parecer um contrassenso gostar de boxe, esporte em que os lutadores buscam a destruição física do adversário mediante a aplicação de golpes no corpo e na cabeça. Vence aquele que derruba o oponente e caso isso não aconteça, a decisão cabe a especialistas que analisam técnica, eficiência, defesa e certos pormenores que podemos considerar subjetivos. Nem sempre o que acontece no ringue prevalece, muitas vezes importa o que os juízes julgam ter acontecido. Assim, muitas lutas terminam com decisões surpreendentes, com o público vaiando e um dos lutadores, e seu staff, protestando. Convém lembrar que além de ser um esporte brutal e apaixonante, o boxe é antes de tudo um grande negócio que movimenta muito dinheiro.

Sobre o ringue pratica-se o mais difícil dos esportes, fora dele promotores correm atrás de lucro. Dessa forma, com olhos no ouro sagrado, são construídas carreiras de lutadores promissores que geralmente despontam em torneios amadores e chegam às competições internacionais. Uma medalha olímpica é prenúncio de título mundial. Mas, antes de atingir o zênite acontecem lutas especiais, sem risco para o futuro campeão que enfrenta adversários marcados para perder. O lutador que serve de escada entra no ringue com a finalidade de embolsar um dinheirinho e melhorar o cartel do oponente. De vez em quando acontece uma zebra, mas é raro.

Ao subir a escadaria do ranking, nas cercanias do cume, as lutas são para valer.

É a hora da verdade. O adversário agora morde, lança fogo pelas ventas e bate forte. Os verdadeiros campeões passam no teste, podemos citar Eder Jofre, cuja carreira foi planejada milimetricamente. Depois de galgar os degraus da fama Eder venceu Joe Medel e consolidou a reputação contra Eloy Sanches. Eder é um caso especial, um dos maiores lutadores da história.

Eder Jofre pertence à maior dinastia familiar do boxe mundial, os Jofre-Zumbano. Seu pai, Aristides Kid Jofre nasceu na Argentina, país que tem grande tradição na arte dos punhos. Podemos afirmar sem medo de exagero que o templo sagrado do boxe do hemisfério sul está na cidade de Buenos Aires e é conhecido mundialmente pelos amantes do pugilismo, o Luna Park.

O grande promotor de lutas na Argentina, no final dos anos 60 e início dos anos 70 era Tito Lectoure, profundo conhecedor dos segredos do pugilismo. Nessa mesma época, no Brasil, para ser mais específico, em São Paulo, atuava Abraham Katznelson, que de bobo não tinha nada e sabia escolher promover seus pupilos, entre eles Eder Jofre. Lectoure e Katznelson trocavam figurinhas, quando um precisava de uma galinha morta o outro tratava de fornecer. O público gostava de lutadores argentinos e acreditava nos cartéis dos visitantes, quase sempre verdadeiros como promessas de políticos.

Embora dependentes uns dos outros, os empresários sempre gostaram de ser vistos como sagazes, espertos. Quem acompanha boxe sabe do que eles são capazes. Coisas como molhar os assentos do ginásio do ginásio do Ibirapuera para que as pessoas não pudessem sentar e assim, com a platéia em pé, aumentar a lotação. Além da esperteza, também gostavam de pregar peças uns nos outros, enviando linholene no lugar de linho. Em vez da esperada galinha morta surgia em terra estrangeira um garboso e altaneiro lutador. De verdade.

Bastava o primeiro treino para cabeças ferverem, na escalada rumo ao olimpo sagrado uma derrota ou mesmo um empate poderia redundar em saída do ranking e o fim do sonho.

Tudo o que está escrito acima é o que os doutos editores de jornais chamam de nariz-de-cera, eu, modestamente, prefiro colocar como introdução. Senta que lá vem história.

No dia 22 de janeiro de 1972, em São Paulo, Miguel de Oliveira nocauteou, no 3º round, o argentino Julio Calvetti. Miguel era uma das esperanças de título mundial para o Brasil, ao lado de João Henrique. Ambos capazes de lotar os ginásios onde aconteciam as lutas, Ibirapuera, Pacaembu e Palestra Itália.

Calvetti chegou para enfrentar Miguel ostentando um cartel modesto, 4 lutas, duas vitórias por nocaute e duas derrotas, uma por nocaute.

Miguel permanecia invicto após 23 combates, dos quais tinha vencido 13 pela via rápida. 

A luta foi um fiasco, o argentino parecia um rato acuado, fugiu e fugiu, agarrou, só faltou morder. Ao sentir o peso da mão de Miguel caiu para não levantar. O público frustrado vaiou. Eu vaiei.

Ninguém sabe o que aconteceu na conversa entre os promotores depois da luta. Imagino que empresário de Miguel tenha feito algum chiste - em portunhol - ao comentar  a noitada com o companheiro argentino.

- Mira Tito, el chico le envió era muy débil. Los aficionados abuchearon. Necesito otro combatiente de febrero. Enviar un uno mejor, usted sabe que Miguel golpea fuerte, quiero un luchador que están de pie durante ocho o nueve rondas, sabes?

- Está bien, lo hice. Voy a tener un tipo especial.

E assim foi feito. Alguns dias depois da conversa pousou em Congonhas um Boeing 737 da Aerolíneas Argentinas com mais uma suposta galinha morta a bordo. Para enfrentar Miguel enviaram outro Miguel. Miguel Angel Castellini.

É preciso deixar claro que Miguel de Oliveira nada tinha a ver com as artimanhas dos promotores. Naquela época, em grande forma, estava apto a qualquer desafio, mas no boxe há o rito da subida no ranking que deve ser seguido à risca, senão nada de título.

Castellini desembarcou com um cartel de 27 lutas, das quais 19 vencidas pela via rápida, 3 por pontos e 4 empates. No cartel uma única derrota, por nocaute, para o peruano Carlos Estrada, pugilista inferior tecnicamente. A imprensa argentina classificou o fato como acidente de percurso. Definitivamente Castellini não era uma galinha morta, longe disso, era um pegador em ascensão e poderia ser uma pedra no sapato de Miguel de Oliveira.

Na semana da luta os treinos de Castellini atraíram dezenas de fãs de boxe. Desta vez o adversário era bom mesmo, a luta seria para valer. Era o que se dizia nas rodas de aficionados. Os promotores perceberam que tinham comprado gato por lebre, alguma coisa precisava ser feita, Miguel era um ídolo em formação, sério, dedicado, todos confiavam nele. 

Mas nos treinos o argentino mostrou serviço. Com guarda alta e estilo clássico, batia forte com a direita, com a esquerda e esquivava-se bem. Sabia manter a luta à distância, mas também sabia lutar corpo a corpo. E era rápido, muito rápido para um médio ligeiro. 

O melhor a fazer era mudar de assunto.

Assim foi feito, não se falou mais na luta de Miguel de Oliveira contra Miguel Angel Castellini. Na data marcada Castellini enfrentou o campeão brasileiro dos meio-médios, Edmundo Leite, que estava com o prestígio em alta depois de bem sucedida temporada nos Estados Unidos.

Foi uma aula de boxe. Com elegância rara nos rings, Castellini iniciou devagar, mantendo Edmundo longe com jabs e diretos. O técnico Carollo percebeu que esse posicionamento seria contraproducente para seu pupilo, de menor envergadura.

No intervalo deu instruções para que Edmundo encurtasse a distância.

Como eu disse antes, Castellini dominava o estilo que os americanos chamam de infight, e assim, alternando jabs, diretos, hooks e uppercuts, passeou no quadrilátero até Edmundo desistir da porfia e não voltar para o quinto round. Nocaute técnico.

Até hoje encontro amigos que falam da luta que não aconteceu.

Castellini continuou sua brilhante carreira e chegou ao título mundial dos médios ligeiros. Miguel de Oliveira também seguiu vencendo e tornou-se campeão mundial ao bater o espanhol José Manuel Duran.

O que teria acontecido no dia 25 de fevereiro de 1972 se no ringue do ginásio do Palmeiras tivessem se enfrentado Miguel de Oliveira e Miguel Angel Castellini?

Pergunta sem resposta.

Mas dá para imaginar que teria sido uma grande luta.

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