Coluna do Mirisola

Balada do lixão do amor demais 

"Uma eternidade é ninharia/ Quando o amor brota lá do fundo do lixo/ e empesta a vida, uma eternidade é menos que as sobras do bandejão, não vale uma fruta podre"

Marcelo Mirisola
Tenho um gênio chamado Marisete, às vezes ele se transforma num vampiro. Ontem, logo que acordamos (antes mesmo da proverbial mijadinha), ele/ela sussurrou-me a seguinte maldade: "Duas semanas para viver vinte anos não é nada/ sobretudo para um vampiro quem tem uma eternidade inteira para ser jogado na lata do lixo".

– Oh, ilusão, Marisete!

Uma eternidade é ninharia/ Quando o amor brota lá do fundo do lixo/ e empesta a vida, uma eternidade é menos que as sobras do bandejão, não vale uma fruta podre.

Nem você, nenhum vampiro, nenhuma eternidade metida a besta vai dar conta do amor demais. Nem sou eu quem vai revirar o lixo e separar placentas desamparadas de seringas descartáveis. Esqueça, meu gênio.

Uma eternidade – disse pra ele: – É ninharia quando o amor escorre feito chorume do lixo/:  nesse ponto, corre-se o risco de o "para sempre" durar um segundo e não terminar nunca mais: tamanha dor/ A dor que causei/ quando traí você e minhas meninas –  comigo mesmo/

Essa é a questão. Perdi as garotas porque não sei fazer cálculos/ nem sequer tenho o controle dos líquidos que escapam do meu próprio cadáver: não tenho as medidas do sofrimento, nem do que sinto/ nem do que faço afligir nos outros, manja o lixão? Tamanha dor. Então, meu amor é chorume, aquele líquido viscoso que escorre do lixo: sou meu próprio biodigestor/ da merda que é minha vida/ vidinha vivida aos soluços/ aos trancos/ minúscula/ dentro de uma eternidade igualmente mesquinha e apodrecida, assim é que me reinvento e deixo herança: filetes de alma e carniça misturados pelo caminho/

“Maldito vodum” – acrescentou Marisete.

Olha só minhas asas: marrons, atrofiadas. Sem falar do inchaço nas canelas / ah, minhas vergonhas injustificáveis e os entraves de sempre/ que porra! / elas moram longe pra caralho. Não pretendo visitá-las!

Sabe, Marisete, o espelho de casa é tão inútil quanto a elegância que carrego comigo/ incrível: mas apesar de tudo, sou um cara elegante: lá do fundo do azedume e dos CDs do Benito di Paula/ que não servem pra nada senão para embalar meus hinos absurdos/ e dar um verniz à minha pauta fajuta, sou elegante sim/ em decomposição/ tenho estilo e ritmo, avenidas derramadas e as cinzas das quartas-feiras/ e perfuro sacos de lixo com meu amor adiposo/ um canastrão tagarela/ percolado e carente/
 
"Al dente"  – Marisete fez a rima só pra me azucrinar….

Afinal, o que as garotas, lindas & jovens, cheias de vida & filhos únicos, o que elas teriam visto nesse tiozinho?/

“Que só fez desperdiçar o amor das pobres criaturas”

– Até o bagaço,eu diria. "O amor" – vaticinou Marisete: – "não é igual à eternidade mesquinha que consome os inexperientes/  feito comida estragada/ aos soluçinhos: você é o vampiro das matinês dessas garotas".

Voilà!  Às vezes, Marisete enche o saco. Às vezes acerta no alvo: sou o Conde Drácula das matinês dos amores abortados, mas afinal:

Por que vocês cismaram com esse tiozinho que faz escorrer chorume de suas coxas / esse chupador de cu que nem bem dá no couro/ e tira o pau pra fora/  como quem não enxerga o próprio fantasma diante no espelho?

O meu amor é fedentina.  O que eu faço é apenas controlar a respiração/ e incensar o horror de seus corpos em surto/ Um mestre-zen tem que saber se pirulitar. Isso foi ela, Marisete, quem me ensinou: a sair fora, pirulitar, dar o pinote. Um pouco pra zoar com vocês antes de gozar/ na órbita de seus olhos esbugalhados/ de anjinhos barrocos/  bastante pelo prazer da sacanagem/ e outro tanto por pura covardia/ e medo. E é só;

O que vocês viram nesse animalzinho eterno? Que não sabe amar menos que amar demais?/ e mais até: o que vocês querem desse jardineiro que aduba as flores negras de suas esperanças com gás metano? O que escolhem, afinal: a explosão, o amor irrestrito, a eternidade ou as avencas colhidas do meu aterro sanitário?

Sobre o autor

Marcelo Mirisola
Considerado uma das grandes revelações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário. É autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.

Outros textos do colunista Marcelo Mirisola.

Publicado originalmente no "congressoemfoco".

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