Política

O Nem pode virar Don Tommasino

Elio Gaspari, O Globo
O secretário de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame, disse que a prisão do bandido Nem é uma "oportunidade importantíssima" para o "oferecimento de alguma medida judicial para que ele pudesse contribuir com a Justiça e, obviamente, com a polícia".

A prisão do chefe do tráfico da Rocinha está cercada de indagações. Não se sabe se ele ia se entregar, nem por que policiais civis queriam levar para uma delegacia o carro onde ele estava escondido no porta-malas. De qualquer forma, se Nem negociava sua rendição, será possível iniciar conversações para que conte o que sabe.

Jogando com as brancas, o Judiciário, o Ministério Público e as polícias podem transformar a memória de Nem numa arma de combate ao tráfico.

Jogando com as pretas, o crime organizado pode matá-lo, ou silenciá-lo, ameaçando sua família.

Num Estado onde policiais militares executaram uma juíza com 21 tiros, isso é plausível.

Se a esta altura os familiares do bandido ainda estão ao alcance das pessoas que ele pode incriminar, as pretas jogam com vantagem. O doutor Beltrame, os magistrados e o Ministério Público conhecem as providências necessárias para facilitar o jogo das brancas.

A "oportunidade importantíssima" disponível para o Estado pode ser usada em benefício do espetáculo ou da investigação. Em outubro de 1972, o delegado Sérgio Fleury era o mais famoso policial do país e, teatralmente, exibiu seu último êxito. Prendera Tommaso Buscetta, o chefe do tráfico de drogas da Máfia na América Latina.
Buscetta contaria que, noves fora choques elétricos e pau de arara, arrancaram-lhe unhas dos pés. Três meses depois, foi extraditado para a Itália, "mas não disse uma palavra sobre a Coisa Nossa".

Na nova cana, tornou-se um líder, respeitando "o ponto de convergência que existe entre os homens honrados" e as autoridades carcerárias. Esteve em regime de segurança máxima e, como sempre, não abriu a boca.

Em 1981, solto, voltou ao Brasil e foi novamente preso. Quando soube que seria embarcado para a Itália, tomou veneno de rato, mas acabou em Roma.

Foi aí que entrou em cena o juiz Giovanni Falcone, a quem Buscetta, uma vez recuperado, começou a contar sua história. Ele diz que só pediu a proteção do ramo brasileiro de sua família, mas Falcone ofereceu-lhe mais um argumento. Como na Itália ainda não havia um programa eficaz para a proteção de testemunhas e Buscetta praticara crimes nos Estados Unidos, extraditaram-no.

Seus depoimentos implodiram as famílias mafiosas, descrevendo-lhes a estrutura e os métodos. Foi a "Pizza Connection".

A polícia americana abrigou a mulher brasileira de Buscetta, com seus filhos. Todos ganharam identidades novas e ele, um novo rosto. Essa segurança pessoal estimulou-o a expor, posteriormente, as conexões da Máfia com os políticos da democracia-cristã italiana.

A conquista da colaboração de um bandido é coisa para profissionais, mas pode ser conduzida no Brasil.

A Máfia jamais se recuperou da pancada de Buscetta, mas matou dois dos seus filhos italianos.

O juiz Falcone e sua mulher, também juíza, foram dinamitados em 1992.

Don "Tommasino" morreu em Nova York, de câncer, aos 71 anos.

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