Ultima flor do Lácio

Observações de um usuário

João Ubaldo Ribeiro - O Estado de S.Paulo
A língua inglesa nunca teve academias para formular gramáticas oficiais e certamente seria afogado no Tâmisa ou no Hudson o primeiro que se atrevesse a tentar impor normas de linguagem estabelecidas pelo governo. Sua ortografia, que rejeita acentos e outros sinais diacríticos, é um caos tão medonho que Bernard Shaw deixou um legado para quem a simplificasse e lhe emprestasse alguma lógica apreensível racionalmente, legado esse que nunca foi reclamado por ninguém e certamente nunca será, apesar de algumas tentativas patéticas aqui e ali. Ingleses e americanos dispõem de excelentes manuais do uso da língua, baseados na escrita dos bons escritores e jornalistas - e, quando um americano quer esclarecer alguma dúvida gramatical ou de estilo, usa os manuais de redação de seus melhores jornais.

A segregação racial nos Estados Unidos produziu um abismo linguístico entre a língua falada pelos negros e a usada pelos brancos. Durante muito tempo, a língua dos negros foi vista como uma forma corrompida ou degenerada da norma culta do inglês americano. Mas já faz tempo que essa visão subjetiva e etnocêntrica foi substituída e o inglês falado pelos negros passou a ser visto pela ciência linguística como "black English", uma língua perfeitamente estruturada, com morfologia e sintaxes próprias, com sua gramática e sua funcionalidade autônoma, não mais como inglês de quinta categoria. E essa visão não foi acatada "de favor" ou para fazer demagogia com a coletividade negra, mas porque se tornou inescapável a existência de uma língua falada por ela, eficaz na comunicação de informação e emoção e que prescindia, sem que isso fizesse falta, de determinados recursos do inglês dominante.

Todos nós, com maior ou menor habilidade, falamos várias línguas, ou dialetos, dentro da, digamos, língua-mãe. Falamos língua de criança, língua chula, língua de solenidade. Podemos não chegar a falar todas as muitas línguas à disposição, mas geralmente as entendemos, como, por exemplo, quando ouvimos um caipira. Essas línguas, em padrões de variedade quase infinita, são todas legítimas, não são "erradas", pois, em rigor, nenhuma língua que funcione realmente como tal é "errada". E, muitas vezes, ao falarmos "certo", estamos na realidade falando inadequadamente, como um orador que, num comício no Mercado de Itaparica, se esbaldasse em proparoxítonas, polissílabos e mesóclises. Eu mesmo falo itapariquês de Mercado razoavelmente bem e alguns entre vocês, se me ouvissem lá, talvez tivessem dificuldade em entender algo que eu dissesse, por exemplo, a meu amigo Xepa.

Cientificamente, a neutralidade quanto a línguas, dialetos ou usos subsiste. Mas não socialmente, e é isso o que me parece ainda estar sendo discutido em torno da propalada aceitação, pelo MEC, de erros de português. "Erro de português" é uma expressão que desagrada ao linguista, porque ele não vê o fenômeno sob essa ótica. No entanto, é assim que o enxerga o público, mesmo o analfabeto, que aprende pelo ouvido a distinguir o certo do errado. Isto porque sempre se entendeu no Brasil que ensinar português é ensinar a norma culta, que, durante muito tempo, foi até mesmo ditada pelos usos de Portugal.

Continua

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