Ramalhete de "causos"

O paradigma de dona Tina

José Ronaldo dos Santos
A escola, quando eu era bem criança, atraía, mas também assustava pelo motivo que pegava algo valioso para qualquer criança: o tempo de brincar. Assim, manter a regularidade da vida escolar era um sacrifício. Por isso que, no primeiro ano escolar, eu faltava em qualquer oportunidade que se mostrava mais prazerosa. Um exemplo? Época de goiaba madura. Outro? Tempo de ninhada dos passarinhos. Tinha ainda as puxadas de rede, as marés vazias para mariscar, a queimada para novo roçado, os preparativos para as festas na capela etc. Em muitas ocasiões aconteceu de conseguir me segurar até o momento do recreio, quando a criançada partilhava banana, beiju, farinha e peixe frito ou assado; depois ganhava os caminhos entre bananais e capim melado. Uma dessas ocasiões foi para assistir o meu tio fazendo um piso cerâmico. Que lindo! Para encurtar: nesse dilema eu descobri as letras, os números, os conceitos de uma época que mais tarde também foram chamados de paradigmas. Um daquele tempo: “Isso de alguém ter pisado na lua é mentira. Imagine se o homem é capaz de ir lá! Deus jamais permitiria uma coisa assim!”

Nesse contexto veio a primeira professora. Dona Tina se desdobrava em uma classe multisseriada, repleta de crianças mais atentas aos pios dos pássaros do que às lições de uma professora vinda de outra cidade especialmente para ensinar. Porém, dela veio o reforço em algumas crenças que já tínhamos. Uma delas continua muito forte até hoje: a vida da Terra depende de nós, mas a nossa vida depende ainda mais da vida da Terra. Dela aprendi um chavão que hoje é comum ouvir até em roda de “civilizados da esquina”: “Estamos a caminho da destruição”. Outro que não me sai da mente é: “A água gosta de quem gosta dela”. Deste último vinha a apelação para não fazer queimadas e plantar mais árvores. Outro paradigma: plantar mais árvores onde já tinha tantas árvores? Alguns topavam, mas a maioria achava que isso era besteira. De paradigmas em paradigmas chegamos ao século XXI.

No início deste século, em janeiro de 2001, sem um planejamento prévio, fui visitar a dona Tina. Ela adorava receber visitas; gostava de contar para os meus filhos como era o Zezinho. Eles adoravam as suas narrativas; acho que me viam correndo nas tigueras e nas costeiras. Lembrei-lhe dos paradigmas, inclusive apresentei um bem atual: doar órgãos para amainar o sofrimento de alguém ou mesmo garantir a continuidade da vida. Nisso conversamos bastante enquanto as crianças se divertiam com um gato velho e quase cego. Para concluir, perguntei: - Dona Tina: depois que a senhora morrer alguém pode doar os seus órgãos? Ah! A resposta da velha mestra veio como relâmpago: - “Nem pensar! Eu não quero que as minhas partes fiquem no mundo, no corpo de alguém pecando. Imagine eu morta e outras pessoas fazendo pecados com partes minha!”. Apesar da lógica da dona Tina, o que eu podia fazer era rir. A essa grande professora, falecida em novembro de 2008, volvo os meus pensamentos em muitos momentos do cotidiano, sobretudo quando estou cuidando das plantas do meu quintal.

Sugestão de leitura: Um tambor nas trevas, de Louis L’amour

Boa leitura!

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