Opinião

Cerco à imprensa argentina

O Estado de S.Paulo - Editorial
Passados 27 anos do fim da ditadura militar na Argentina, o governo da presidente Cristina Kirchner pediu abertura de processo contra os diretores dos dois mais importantes jornais do país, Clarín e La Nación, por alegada cumplicidade dos periódicos com "crimes de lesa-humanidade" cometidos pelo regime em 1976. Os diários são acusados ainda de envolvimento com atos de "homicídio, extorsão, privação ilegítima de liberdade e tortura". Os ex-proprietários de um terceiro jornal, La Razón, adquirido pelo Grupo Clarín, também foram incluídos na denúncia.

A iniciativa, anunciada pela Casa Rosada em fins de agosto, não é nada do que aparenta - o restabelecimento da verdade e a imputação de responsabilidades aos controladores de duas organizações jornalísticas pela participação em algumas das brutais violações dos direitos humanos perpetrados ao longo do ciclo ditatorial argentino. Na realidade, por um tortuoso caminho, Cristina e seu marido, Néstor, o presidente que a precedeu e deverá se candidatar à sua sucessão no pleito de 2011, pretendem amordaçar as principais vozes críticas ao kirchnerismo na mídia nacional.

A arena em que se arma o garroteamento da imprensa independente argentina não é a do exercício da censura convencional em suas diversas modalidades, mas a da apropriação do insumo essencial do setor de comunicação impressa - o papel-jornal. Para dar certo, a operação passa pelo alijamento do Clarín e do La Nación do controle acionário da companhia Papel Prensa, que fabrica 75% do produto utilizado no país e abastece 170 jornais. O primeiro daqueles diários enfeixa 49% das ações da empresa. O segundo, 22,49%. O Estado detém 27,46%. As relações entre os acionistas privados e o parceiro estatal são de confronto aberto. De março até este mês, a Papel Prensa esteve sob intervenção, a pedido do governo.

Há mais de um ano, os Kirchners vêm tramando uma ofensiva em duas frentes para estatizar a empresa. De um lado, o governo enviou ao Congresso um projeto que declara "de interesse público" a produção e distribuição de papel-jornal. De outro, como previsto, foi à Justiça para incriminar os dirigentes dos matutinos que ainda não sucumbiram às intimidações da Casa Rosada. A acusação é de que, em conluio com os militares, coagiram os então proprietários da Papel Prensa a vendê-la a preço vil. Mas a mera cronologia dos fatos desmonta a ficção urdida pelo governo. A empresa pertencia à família do banqueiro David Graiver, Morto em agosto de 1976 no México, num desastre aéreo jamais elucidado.

Graiver aplicava no exterior os recursos obtidos pelo movimento armado peronista Montoneros com os sequestros de empresários argentinos. Entre março e abril de 1977, o regime prendeu e torturou seis parentes do banqueiro, entre eles a sua viúva Lidia Papaleo, condenada a 5 anos de prisão pelas ligações da família com a organização guerrilheira. Nessas condições, ela teria concordado em passar adiante a Papel Prensa. O anacronismo é flagrante: a transação ocorrera em novembro de 1976, meio ano antes, portanto. Os Graivers precisavam de dinheiro, entre outras coisas, para devolver aos Montoneros a sua parte. O irmão de David, Isidoro, entre outros familiares, assegura que a venda foi voluntária e a valor de mercado.

Também chama a atenção que, em nenhum outro momento, desde a redemocratização do país, em 1983, e no curso das numerosas investigações sobre os horrores do regime militar, se levantaram dúvidas sobre a legitimidade do negócio. Em nota conjunta, Clarín e La Nación qualificaram o pedido de processo "uma aberração moral e jurídica", sem nenhum fundamento na realidade. "O governo", assinalaram, "insiste em mentir, reescrever a história e manipular os direitos humanos como ferramenta de perseguição e represália." O mais grave é que os Kirchners o fazem apostando na complacência de um Judiciário em boa medida domesticado. É improvável que a presidente se expusesse ao risco de ver negada a sua solicitação.

As perspectivas para a liberdade de imprensa na Argentina são sombrias. O controle da mídia faz parte da operação eleitoral peronista no próximo ano.

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