Fábula

Os sem história (Déspotas, megafones e traições)

“Tinham compreendido (os tiranos) ser possível fazerem o que quisessem de um povo que se deixava apanhar na rede, por muito frágil que ela fosse, um povo tão fácil de enganar e submeter que quanto mais dele zombavam mais se rebaixava”.
(Etienne de La Boétie – Discurso sobre a Servidão Voluntária)

Capítulo I – Do déspota e do evangelho de resultados

Era uma vez, um reino governado por um déspota. Apesar de arrecadar muitas riquezas através de impostos, receber muitos créditos e de ter muitas possibilidades de crescimento, aquele reino se fechara em si mesmo, servido apenas para que uma oligarquia (constituído por cavaleiros e membros do conselho) explorasse seus cofres, transferindo para o bolso de poucos o que deveria ser usado para melhorar a vida de todos.
Todo esse processo era acompanhado pelo povo daquele reino, formado – em sua maioria - por bárbaros, vindos em hordas de lugares muito pobres e que, sem qualquer consciência a tudo aceitavam, e ainda lutavam pelas migalhas. Migrantes da fome, iludidos por promessas, desqualificados e sem noção da história e da grandeza do lugar que invadiam, foram chegando ao reino na calada da noite e montando acampamentos precários. Sob o auspício do Déspota, Missionários levavam a estas hordas a mensagem de um Evangelho de Resultados, composto de desafio a Deus, onde só venceria apenas o que tivesse fé cega. Como resultado desta manipulação, a fome, a miséria grassaram, e a falta de amor pelas coisas daquele reino, transformaram a todos em massa de manobra para o Tirano e sua Corte.
Havia também uma classe intermediária, quase uma ordem palaciana, que defendia o déspota ( e defenderia fosse ele quem fosse), apenas para manter seus privilégio: eram os que dependiam de licenças ou outras permissões para explorar os súditos e os estrangeiros que por ali transitassem. Tinham representantes no Conselho e alguns julgavam ter forças para ver atendidas as suas reivindicações.

Capítulo II - Do conselho comprado

Também não se pode esquecer do Conselho do Reino, que era escolhido pelo povo - por força de uma antiga lei - para que garantisse a expressão de sua vontade junto ao Rei. Apesar de eleitos, a maioria dos Conselheiros cedera todo o seu poder ao déspota em troca de vantagens pessoais. Nas sessões do Conselho, tudo era feito para agradar ao Tirano. Se havia alguma denúncia contra qualquer ato do Príncipe, o denunciado era ridicularizado e e justificava-se a irrregularidade ou o crime, com a máxima criada por um deles “ Pode até ser ilegal, mas não é imoral” ou então o velho dístico “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”, encerrava qualquer discussão.
O déspota sabia que tinha opositores, que havia uma grande parcela de descontentes, mas também sabia que muitos temiam a sua espada. Eram poucos os que tinham coragem para expor as mazelas pelas quais o reino passava ou criticar o rei e os oligarcas que estavam ao seu lado, que exploravam em benefício próprio o que deveria ser para o progresso de todos.

Capítulo III - Do monocórdio megafone

Após chegar ao poder, o déspota mandou comprar todos os megafones que encontrou e os distribuiu aos seus vassalos para que difundissem a sua ideologia e suas palavras. Todos deveriam – durante seis horas por dia – gritar que o Rei era bom, uma pessoa pura, ungida por Deus e que todos os atos do D'Ele eram guiados por uma força superior. Quem falasse mal do rei era inimigos de Deus, por isso suas palavras não deveriam ser ouvidas e seus nomes denunciados para serem execrados para todo o sempre.
Todo este processo acontecia ao arrepio da Lei que continuava a mesma de sempre. O Rei sabia o quanto demoravam os processos e mantinha -com o dinheiro do povo – um batalhão de rábulas e capangas para defendê-lo. Além disto, quem acreditaria que o Rei (ou um de seus Cavaleiros ou Conselheiros) faria algo errado? Os megafones não anunciavam que todos eles eram ungidos por Deus?

Capítulo IV - Das revoltas intestinas

Volta e meia, vassalos que, há muito, eram serviçais no palácio se revoltavam contra todo aquela podridão intestina e deixavam escapar, cheios de vergonha, informações sobre negociatas ou desmandos que haviam presenciado ou sido coniventes. A grande maioria pedia sigilo, pois se o Rei ou seus cavaleiros descobrissem que partira deles o vazamento da informação, eles sofreriam as consequências.
O Rei havia montado uma rede de espiões, contratados para avisá-lo sobre qualquer deslize. Se o vassalo fosse descoberto passando alguma informação dos desmandos, o Rei impiedoso, decretava a morte (civil) do pobre infeliz, como se fosse um traidor.
E os Decretos Reais, anunciados pelos arautos eram claros: diziam que qualquer um que falasse, negociasse ou desse qualquer emprego para aquele que fora considerado traidor seria também atingido pela ira real (mas assim eram tratados apenas pequenos vassalos do palácio, os que podiam ser descartados).
No interior do palácio e na sede do Conselho, o Rei trazia sob o seu controle, e de seus cavaleiros, muitos dos que ele sabia que não lhe seriam fiéis. Estes eram tratados com pequenos agrados, com pequenas regalias que garantiam, se não o comprometimento, pelo menos o silêncio deles. O Déspota sabia que estes eram como os cães que circundam as mesas dos banquetes, sempre na espreita das migalhas.

Capítulo V - Da aética sobrevivência

Numa das salas do palácio, um dos silenciados transpira, está intranquilo. O que ele viu e ouviu prejudicará a população do Reino, mas garantirá que dois ou três cavaleiros se beneficiem com milhões. Sabe que o seu silêncio o transforma em um traidor...
Como por encanto, recebeu a visita de um emissário do Rei, que lhe diz: - Vossa Majestade sabe que tu sabes. Mas tu (ou tua mulher, ou teu irmão, ou teu filho etc) dependes do dinheiro que recebes dos cofres reais. Lá fora, as opções de emprego (não de trabalho) são muito difíceis. É melhor que tu fiques calado e continues por aqui. No interior do palácio, tu fingirás que trabalha, permanecendo com a tua boca bem fechada, ok? Por aqui não haverá cobranças, nem de moralidade, nem impessoalidade, muito menos de eficiência.
O silenciado responde: - “Arham.... tá... sim... falou” (traduzido: “Sim, meu senhor! Serei subserviente a tudo para pagar os carnês da TV, os cheques da reforma da casa. Ainda mais por que sei que, depois vinte anos de espera, cheguei ao meu topo, ao paraíso”).

Final – Da moral da história:

Naquele Reino distante, foram as informações que vazaram - através daqueles pequenos vassalos que foram mortos (civilmente) por decreto – que ajudaram aos oponentes do Terror a montar a estratégia necessária para derrubar o Tirano, seus cavaleiros e os Conselheiros que traíram o povo.
Foi empossado um Novo Regime, onde o Príncipe, apesar de bonachão e bem intencionado, nada muda estruturalmente a situação do Reino. Não impôs retaliações, pois era de boa paz, convocando a todos para um grande pacto cristão. Desta forma, os silenciados voltaram à suas vidas comuns, lamentando a falta de inteligência do Déspota e da avareza do mesmo. Os que dependem das permissões já são aliados de primeira hora do Novo Príncipe, jurando defendê-lo, enquanto seus privilégios forem mantidos. Já o povo, este sente saudades dos megafones que contavam as histórias daquele homem puro, ungido por Deus. Afinal, ele (o povo) continua acreditando que era apenas uma questão de tempo para que chegasse comida e moradia, sem que fosse preciso fazer nada.
Naquele pequeno Reino, é o povo, sem formação e sem história, que continua sendo a garantia da porta sempre aberta aos Tiranos e aos Conselheiros mal intencionados.

Marcelo Mungioli

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