Ficção nada científica

Sonho de uma noite de inverno

Na noite do último sábado acabei dormindo na frente da televisão. Acordei tonto no meio da madrugada, fazia frio. Olhei as horas, duas e quarenta e cinco. Fui beber água. Quando voltei para desligar a TV estava começando um filme. Não vi o título, mas as cenas que se desenrolavam prenderam a minha atenção. Imagens violentas, dois rapazes e uma garota espancando um casal. O sangue jorrava sobre a cama, em certo instante voaram pedaços brancos de miolos. Imaginei ser coisa de Quentin Tarantino, uma nova versão de Pulp Fiction. Terminado o ataque os jovens saíram de cena, deixando o casal estático em meio a um mar de sangue. Depois de um corte brusco surgiu em cena um executivo trabalhando em uma sala luxuosa. Era um flash back, entendi logo a intenção do diretor, estava começando a história. O homem aparentava quarenta e cinco anos, era branco, alto e de olhos azuis. Sobre a mesa uma placa identificadora. Albert Udet, engenheiro civil. Udet, o mesmo nome do ás da aviação alemã da primeira guerra mundial. Com o desenrolar da película detalhes mostraram que o engenheiro era mais do que um técnico. Era arrecadador de fundos de um partido político que tinha como símbolo uma ave colorida. Como diretor de empresa estatal o engenheiro tinha meios de manipular concorrências e assim conseguir numerário para as campanhas de seus companheiros. Sua esposa, Marta Dora, era uma renomada psicanalista. O casal aparentava prosperidade, na verdade muito além do que seria possível com os salários que recebia. Moravam em uma casa grande e de mau gosto e tinham vários automóveis. Também tinham dois filhos, um garoto de quinze anos, André e uma garota de dezenove, Andréia, estudante de direito. A vida seguia seu curso até que o engenheiro Udet precisou abrir uma conta na Suíça para guardar dinheiro do partido. Ele o fez em seu nome e em nome da filha, que recebeu uma senha. Ela não tinha idéia de quanto era, imaginava ser uma pequena poupança para viagens. Andréa namorava Sérgio Barrinhos, garoto de classe média baixa, que vivia da venda de modelos de navios que fazia em seu quarto. Sérgio tinha um irmão mais velho, Alípio, também sem profissão definida, que vivia de bicos. Os pais de Andréia não aprovavam o relacionamento o que resultava em brigas e ressentimentos. Certo dia, após um diálogo ríspido com o pai, Andréia foi para o quarto levando um livro que encontrou sobre a mesa do escritório. Dentro dele, à guisa de marcador de páginas, havia um extrato com a quantia de cem milhões de dólares. Depositada na Suíça em seu nome e no de seu pai. Ela entendeu que a "poupança" era dinheiro ilegal, só poderia ser, eles jamais sonharam com valores tão altos. Na mesma noite ela contou ao namorado que a instigou a pedir uma parte, assim eles teriam como viver sem problemas, felizes para sempre. Ela pensou sobre a proposta e concordou. Os diálogos subseqüentes entre pai e filha foram terríveis, o pai temendo ser descoberto alterou a senha da conta. Fez isso na sexta-feira, na semana seguinte informaria ao partido e o dinheiro seria transferido. Ele já não era um porto seguro, sua filha sabia, outros acabariam sabendo. Naquela noite de sexta-feira houve uma terrivel discussão entre pai e filha. Ele terminou por esbofeteá-la na frente da mãe e do irmão. Corte rápido. Voltamos à cena macabra em que os irmãos Barrinhos e Andréia matam o casal. Aconteceu no sábado. A polícia não demorou em descobrir os autores do crime, que foram presos e depois de muitas idas e vindas condenados. A garota teve todo o tipo de assistência de amigos do pai, afinal de contas ela sabia a senha. Isto é, todos pensavam que ela sabia, até ela. O que ninguém desconfiava é que Udet a trocara na véspera da morte. Os três assassinos foram condenados. Sairiam em dez anos, tempo suficiente para combinar seis letras e três números e encontrar a chave dos cem milhões de dólares. Enquanto a tela escurecia para o tradicional the end, tive de me beliscar para saber se estava acordado ou era um sonho. Logo me dei conta da verdade, era um filme. Qualquer semelhança com a vida real não passava de coincidência.

Sidney Borges

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