Opinião

Donald Trump vai ampliar o isolamento de Angela Merkel

Demétrio Magnoli
Trump conservará a aliança estratégica dos EUA com a Europa, disse Barack Obama a Angela Merkel, expressando menos uma crença que uma torcida. Em janeiro de 1917, Woodrow Wilson conclamou sua nação a assumir responsabilidades sobre "a paz e a justiça" no mundo. Daquela declaração nasceu o engajamento americano na Grande Guerra e a Liga das Nações, que anteciparam a entrada dos EUA na guerra contra o Eixo, a ONU e a Otan. O triunfo de Trump anuncia a ruptura de cem anos de internacionalismo dos EUA, interrompido apenas pela recaída isolacionista do entre-guerras. No cenário atual, isso indica que Merkel está só.

Pouco antes da visita de Obama à Alemanha, Trump manteve sua primeira conversa telefônica com um líder estrangeiro na qualidade de presidente eleito. Notavelmente, o interlocutor não era Merkel, nem o francês Hollande ou a britânica May, mas o russo Putin. O americano expressou seu desejo de ter uma relação "estreita e duradoura" com a Rússia, eximindo-se de mencionar as palavras "Ucrânia" ou "Síria". Uma nota do Kremlin festejou o "alinhamento de pontos de vista" entre os dois líderes. Horas mais tarde, o regime sírio retomou os bombardeios contra Aleppo. O Trump presidente será o Trump candidato, menos as promessas demagógicas mais extravagantes.

Na campanha, Trump classificou a Otan como "obsoleta", recusou-se a condenar a agressão russa à Ucrânia e, referindo-se à crise dos refugiados, acusou Merkel de "arruinar a Alemanha". Um artigo de Dirk Kurbjuweit no Der Spiegel, semanário alemão de referência, diagnostica que os EUA abdicaram de seu papel de liderança –e conclui assim: "É a hora da Europa, e de Angela Merkel, preencherem o vazio". Fina ironia da história: aos olhos de muitos, sete décadas depois de Hitler, a Alemanha emerge como guardiã dos valores do Ocidente.

Na visão de mundo de Trump, não existe um lugar para os valores. Merkel, porém, definiu o lugar deles na sua mensagem de felicitação ao presidente eleito, que deve ser lida como uma enfática advertência: "A Alemanha e os EUA estão ligados por valores comuns –a democracia, a liberdade, bem como o respeito ao governo legal e à dignidade de cada indivíduo, seja qual for sua origem, cor da pela, credo, gênero, orientação sexual ou posições políticas. É com base nesses valores que quero oferecer plena cooperação, tanto comigo, pessoalmente, quanto entre nossos governos".

Merkel está tão só como uma ilha. Trump na Casa Branca, Putin no Kremlin e Erdogan em Ancara formam a paisagem de um desmoronamento: desglobalização, antiliberalismo, nacionalismo. A chanceler alemã não pode contar com a retaguarda dos parceiros europeus. Sob a égide do "brexit", que consome suas energias e o arrasta para o pântano da xenofobia, o Reino Unido desliza para fora do tabuleiro. Atordoada pelo terror, a França experimenta o fracasso retumbante do governo de Hollande. Na Itália, o gabinete de Matteo Renzi arrisca-se a implodir sob o impacto de uma derrota no referendo constitucional de dezembro.

A Rússia é uma ameaça externa, nas bordas dos mares Báltico e Negro. Multiplicam-se as ameaças internas. Governos populistas se instalaram na Polônia e na Hungria. O espectro de Marine Le Pen ronda a França; o de Beppe Grillo, a Itália. Partidos ultranacionalistas rondam a Áustria, a Suíça, a Holanda e a Dinamarca. Nigel Farage, líder da extrema-direita, é o principal interlocutor britânico de Trump. Nesse cenário caótico, a remoção do guarda-chuva estratégico americano pode ser fatal para a ordem europeia do pós-guerra.

O medo, porém, faz milagres. Stalin –isto é, o medo da URSS, da perda das liberdades– funcionou como unificador original da Europa. Trump, que personifica o medo da ausência americana, talvez funcione como o segundo unificador. Angela está só, mas tem o medo como seu trunfo. 

Original aqui

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